quinta-feira, 20 de setembro de 2018

MACHADO & MÓNICA


Hoje na Sábado escrevo sobre O Corpo Dela e Outras Partes, de Carmen Maria Machado (n. 1986). Por regra, os escritores fortes constroem a sua persona. Mas o processo era lento, e só dávamos por isso a meio da carreira. Agora não. O protocolo das redes sociais mudou tudo. Assim que publica o primeiro livro, o escritor apressa-se a divulgar as idiossincrasias. É o modus operandi de Carmen, filha de emigrantes cubanos e autora residente da Universidade da Pensilvânia, que usa o Twitter para pôr tudo em pratos limpos. Os contos reunidos em O Corpo Dela e Outras Partes dão notícia de uma voz poderosa, sem necessidade de mais nada, porque nos fala do corpo, de sexo, violência, paixão e morte. E fica tudo dito com apreciável grau de conseguimento. Como meta-linguagem, a literatura dispensa folclore. Neste caso, folclore significa o aproveitamento que tem sido feito do seu livro por parte do movimento MeToo. Sucede que a qualidade desta escrita passa bem sem muletas ideológicas. As questões identitárias são centrais à obra? É evidente que sim: «Ela movia-se com uma descontracção masculina e dura […] Fiquei molhada.» Neste conto, um casal de duas mulheres tem um bebé. Lesbianismo, portanto. É a circunstância de Carmen, casada com uma mulher. Um escritor sério escreve sobre o que conhece. A economia discursiva é uma vantagem. Carmen descreve cenas de sexo com natural parcimónia: «Não sei muito bem o que ele vai fazer, só quando o faz. Está duro, quente e seco, e cheira a pão e, quando me rasga, grito e agarro-me a ele como se estivesse perdida no mar.» Os textos mais agressivos, a roçar a pornografia, assina-os como Olivia Glass, o pseudónimo hard. Um dos textos corresponde a 272 sketches escritos a partir das doze temporadas da série de televisão Lei & Ordem. Um inventário de fantasia sem limites. Aqui é um conto, mas este núcleo constitui o livro de estreia: Especialmente Abominável (2013). Uma forma de colagem como qualquer outra. A ficção de Carmen não tem fronteiras, e por vezes aproxima-se da plenitude, como em As Mulheres de Verdade Têm Corpo. Quatro estrelas. Publicou a Alfaguara.

Escrevo ainda sobre Nunca Dancei Num Coreto, da socióloga Maria Filomena Mónica (n. 1943). As crónicas são um género nobre, entre nós muitas vezes confundido com panfleto político. A autora reuniu neste volume as que escreveu a partir de 2011. Maria Filomena Mónica tem a enorme vantagem de pensar pela sua cabeça. Temas prosaicos ou eruditos, o desembaraço é de regra. Com brilho, a autora salta dos efeitos corrosivos da burocracia para as idiossincrasias de Christopher Hitchens, da redução de salários do Estado para a cultura do desenrascanço, dos bastidores da vida académica para a gentrificação do bairro da Lapa, do crash do Lehman Brothers para os direitos das mulheres, da escola pública para a regressão das liberdades individuais, de Sócrates (o antigo primeiro-ministro) para as casas de banho de hotel, da banlieue de Paris para Obama, da farsa independentista de Puigdemont para a guerrilha geracional, do pianista Claudio Arrau para Marcelo (o Presidente), da desigual repartição de sacrifícios para os graffiti, da doença para o esplendor da relva. Deveras estimulante. Quatro estrelas. Publicou a Relógio d'Água.