Hoje na Sábado escrevo sobre Burgueses Somos Nós Todos ou Ainda Menos, de Mário de Carvalho (n. 1944). Tomando de empréstimo um verso de Cesariny, o autor juntou onze contos novos nesta colectânea. Estamos de volta à comédia humana conforme Balzac a formatou. Valor acrescido, neste caso, uma vez que é de nós que o autor trata. Perdido o lastro marxista do opróbrio, o que é hoje um burguês? Um trabalhador com pelo menos três salários mínimos no bolso, apetência por tectos falsos e WC social com música ambiente? Papás ciclistas com a ninhada a tiracolo? Gestoras obcecadas com o próximo team building…? As mulheres que o narrador nos apresenta põem os cornos aos maridos, mesmo as que o fazem por omissão. Algumas, como Leonor, praticam intercaladamente, ora com um magano desempoeirado, ora com um relapso. Afinal, Leonor «presisava de folguedo, mas também de drama. Não era uma alma simples…» O cinismo é de regra, mas não há outra forma de dizer as coisas. As boas intenções dão má literatura, e estes contos podem ser acusados de tudo excepto de deliquescência. Sirva de exemplo O fim da lista, texto amargo, porém isento de melodrama. Na realidade, o fim da linha, com flashback jubilatório: «os tempos em que a relva do Estádio Universitário era afago de abraços espojados…» Na sua exactidão, terrível a imagem de Luísa Fróis em contraluz. Como disse um dia Montherlant, «O mundo dos que vão viver e o mundo dos que vão morrer não tem medida comum.» Sob a fina camada dos sketches passionais que a maioria dos leitores vai reter, é sobretudo de envelhecer que este livro trata. O excelente Por onde tens andado? talvez seja o exemplo óbvio porque nem tudo se expõe com igual clareza. São muitos os temas ilustrados. Destaco a engenharia social, o sexo, doença, o arrivismo, o refluxo ideológico, a fraude bancária (em Transes bancários, como não ver o transe do Banco Privado Português?). Esgalhados em português de lei, estes contos são quase todos magníficos. Cinco estrelas. Publicou a Porto Editora.