quinta-feira, 26 de abril de 2018

VUILLARD & FINN


Esta semana, na Sábado, escrevo sobre A Ordem do Dia, Prémio Goncourt 2017, o ‘romance’ que assinala a estreia, em Portugal, do francês Éric Vuillard (n. 1968). Várias vezes laureado, Vuillard é autor de obras sobre temas históricos, como sejam a queda do império Inca, a Revolução Francesa, a colonização do Congo, a Primeira Guerra Mundial, tendo desta vez feito pontaria ao III Reich e, em particular, ao apoio das grandes indústrias alemãs, como a Opel, Telefunken, Krupp, Siemens, Basf, Allianz, IG Farben, Agfa, Varta e Bayer. Sem esse apoio, Hitler não teria chegado onde chegou. A precisão é tal que nos questionamos sobre se A Ordem do Dia é, como anunciado, um romance ou, em vez disso, uma crónica sobre factos da História. Palavras do autor: «A literatura autoriza tudo». De facto, em 20 de Fevereiro de 1933, em Berlim, teve lugar a reunião fatal: «As sombras penetraram no grande vestíbulo do palacete do presidente da Assembleia; em breve, porém, deixará de haver Assembleia…» Vuillard descreve com elegância não isenta de sarcasmo o encontro dos sacerdotes da alta finança em casa de Göring, então presidente do Reichstag. São todos citados pelo nome. Com as eleições de Março no horizonte, Göring recorda as responsabilidades de cada um: destruir os sindicatos e acabar com o comunismo. O primeiro capítulo é um prodígio de ironia sobre a história da Opel, «um império incorporado noutro império». Por outro lado, o retrato que faz de Edward Wood, Lorde Halifax, o ministro britânico que deitava água na fervura do Anschluss, tem alto teor de corrosão: «No que toca às ideias, Halifax não tem grandes pudores.» É portanto neste registo de crónica factual que o ‘romance’ progride. Está lá tudo: o incêndio do Reichstag, Dachau, a ominosa Noite das Facas Longas, as leis da eugenia, os recenseamentos étnicos, a noção de espaço vital, o assassinato de Dollfuss, o encontro de Hitler e Schuschnigg em Berchtesgaden, a anexação austríaca, a invasão da Checoslováquia, conversas de Ribbentrop, o flop da primeira série de tanques Panzer… Interessante, mas pouco romanesco. Quatro estrelas. Publicou a Dom Quixote.

Escrevo ainda sobre A Mulher à Janela, romance de estreia de A. J. Finn, pseudónimo de Daniel Mallory (n. 1980), reputado editor de thrillers e crítico literário. Lembram-se de Janela Indiscreta, de Hitchcock? O livro é inspirado no filme. Coincidência ou não, assim que saiu do prelo, os direitos da obra foram comprados para adaptação ao cinema. Escrito no termo de mais uma depressão do autor, o romance corresponde a um guião bem esgalhado, com estrutura de planos sinalizada e diálogos adequados. No livro, em vez do fotógrafo do filme, temos Anna Fox, uma psicóloga infantil, agorafóbica, que vive com o filho e um gato, e um dia testemunha o indizível. Anna tem a mesma idade que o autor. Como ele, vive em Manhattan e vê muito cinema. O livro está encharcado de referências cinéfilas, algumas redundantes, nem todas com direito a nota de rodapé. O convívio com os Russell, a família disfuncional que foi viver para o outro lado da rua, muda a sua vida. As coisas não são exactamente o que parecem, mas não será esse o fascínio dos thrillers? Quatro estrelas. Publicou a Presença.