Hoje na Sábado escrevo sobre Gente Séria, estreia de Hugo Mezena (n. 1983) no romance. É bom ler um primeiro romance esgalhado em prosa desenvolta. Frases enxutas, e em regra curtas, mergulham o leitor no seio de uma família em ambiente rural. Isenta de retórica, a intriga flui com naturalidade. Nenhum malabarismo semântico belisca o discurso: «Talvez o avô Jorge tenha começado a ficar senil no dia em que andou aos gritos pela casa.» Tendo boa noção dos tempos do discurso, bem como do efeito de distanciação, o narrador evita todo o tipo de enxúndia. A literalidade tem os seus óbices, mas é sempre preferível a metáforas patetas. Hugo Mezena não está sozinho na descrição da vida e hábitos rurais. Tiago Patrício, autor da mesma geração, dissecou esse peculiar universo em dois romances bem conseguidos. Contudo, o autor de Gente Séria tem a seu favor a ausência de ademanes ‘poéticos’. Dizer as coisas como elas são poderá não ser amável, mas tem o mérito da exactidão: «Quando cuspia do pátio para o quinteiro, o avô esforçava-se para acertar com os escarros uns em cima dos outros.» A história do narrador é contada por interposta família, dando a ler uma espécie de romance de formação aleatório. Não me parece despicienda a ideia de flashback contínuo, ou mesmo de romance-em-pretérito. Tudo aconteceu já. Narração autodiegética, portanto. Sem rodeios, os factos sucedem-se com meridiana clareza. Sirva de exemplo o estimulante episódio do autocarro: aos 17 anos, no Porto, joelho contra joelho de uma rapariga, o tio Alexandre excita-se com a possibilidade de sexo rápido. A fantasia não tem pés para andar e, com a braguilha a rebentar, o rapaz acaba na cama de uma balzaquiana da Foz, «uma mulher que sabia aquilo em que um homem pensava e deixava tudo isso acontecer. […] Uma mulher sem princípios.» Em dois andamentos, o percurso do engate prende o leitor. Infelizmente, pouco comum na ficção recente. Verdade que o autor tem experiência de escrita noutros domínios, isso explica o desembaraço do romance. Com efeito, «Há coisas que não param depois de terem sido postas em movimento.» Quatro estrelas. Publicou a Planeta.