quinta-feira, 23 de novembro de 2017

LEWIS & ALMADA


Hoje na Sábado escrevo sobre Isso Não Pode Acontecer Aqui, de Sinclair Lewis (1885-1951). A inesperada eleição de Trump desenterrou este livro esquecido do autor. Como os factos provaram, pôde. Publicado em 1935, o romance antecipa o folclórico modus operandi da actual administração americana. Berzelius Windrip, personagem inspirada na figura de Huey Long, governador da Louisiana, é uma antevisão de Donald Trump, «o homem certo para fazer retroceder os espiões judeus, sujos e ladrões que se fazem passar por liberais americanos!» É só trocar ‘espiões judeus’ por ‘membros do Daesh’ para aceder à realidade. Roosevelt, derrotado pela oratória de Berzelius Windrip em prol dos valores tradicionais e dos anseios dos trabalhadores ignorados pelas elites, faz as vezes de Hillary Clinton. Também há jornalistas liberais que não largam as canelas do novo presidente: Doremus Jessup é um deles. (Quando o livro saiu, toda a gente viu no personagem o retrato de um influente repórter.) Berzelius Windrip acusa a imprensa de inventar mentiras a reboque da retórica dos intelectuais liberais, o jogo sujo da democracia parlamentar e os políticos ‘profissionais’. Um livro profético? Tudo indica que sim. A escrita elegante e irónica de Sinclair Lewis faz uma grande angular sobre a América do pós-New Deal, que o mesmo é dizer uma crítica mordaz das sequelas do capitalismo selvagem, das corporações dominantes (indústria militar incluída) e dos interesses de casta. O busílis não se resume à política interna. Em 1935, o nazismo estava no auge e a possibilidade de atravessar o Atlântico preocupava os democratas: «Tal como sucedera anteriormente com Hitler e Mussolini, Windrip & C.ª tinham descoberto [a forma de] controlar cada artigo de imprensa.» Sinclair Lewis sabia do que falava. A mulher tinha entrevistado Hitler durante uma viagem à Alemanha, bem como Huey Long (enquanto candidato às Primárias), e as idiossincrasias de ambos foram o detonador do plot. O que impressiona é a nitidez do decalque com 80 anos de intervalo. O lado paródico tem páginas deveras bem conseguidas, graças sobretudo aos militares e aos serviços secretos. Este romance distópico foi adaptado ao teatro, ao cinema e à televisão. Quatro estrelas. Publicou a Dom Quixote.

Escrevo ainda sobre Raparigas Mortas, de Selva Almada (n. 1973), livro que tem o femicídio como tema central. A escritora argentina usou três casos verídicos para ilustrar o crime de género que tem por objecto o assassinato de mulheres. O livro é narrado na primeira pessoa. Estamos no domínio da não-ficção em formato romance, método que tem o seu epítome em Truman Capote. A escrita é lapidar: «uma única punhalada no coração quando ela estava a dormir. Como se a própria cama fosse a pedra dos sacrifícios.» Foi assim que Andrea Danne morreu. Tinha 19 anos. Maria Luísa Quevedo foi violada, estrangulada e abandonada num baldio. Tinha 15 anos. Sarita Mundín esteve desaparecida nove meses até que o seu esqueleto apareceu nas margens de um rio. Tinha 20 anos. Selva Almada intercala no relato parte da sua biografia, bem como episódios de bestialidade masculina: «penetraram-na os dois, cada um por sua vez, várias vezes. E quando as vergas se fartaram, continuaram a violá-la com uma garrafa.» Afinal, ela não passava de uma «aquece-braguilhas». Aconteceu na Argentina, nos anos 1980. Continua a acontecer. Cinco estrelas. Publicou a Dom Quixote.