Hoje na Sábado escrevo sobre Dias Sem Fim, o romance mais recente do irlandês Sebastian Barry (n. 1955). O autor não é um desconhecido dos portugueses, tendo a sua ficção sido bem recebida pelo público e pela crítica, o que não acontece com a poesia e o teatro, inéditos em Portugal. Narrativa de fôlego, trata das aventuras e da relação amorosa entre Thomas McNulty e John Cole, companheiros de armas durante a Guerra de Secessão (1861-1865) nos Estados Unidos. Quem conheça a obra anterior, sabe que Dias Sem Fim é o quarto livro do autor sobre a família McNulty, obrigada a cruzar o Atlântico para fugir à Grande Fome na Irlanda. Por volta de 1850, Thomas, o narrador, chegou ao Missouri e alistou-se como voluntário. Tinha então dezassete anos. John, com dezasseis, mas parecendo já um homem, tinha um ar janota e era bisneto de uma índia. Os dois tornaram-se amigos para a vida. Mas a história não começa aí. Antes da experiência militar, ambos arranjaram emprego como taxi girls num cabaré de Daggsville. Falando dos clientes, ou seja, dos mineiros da região, o empregador adverte: «Eles só precisam da ilusão […] nada de beijos, nem abraços, nem sentimentos ou apalpadelas. Só uma boa dança respeitosa.» E foi assim que Thomas e John, dois belos rapazes, se tornaram as primeiras raparigas em Daggsville, verdadeiras fadas da pradaria: «Todas as noites, ao longo de dois anos, dançámos com eles.» Era isso ou morrer à fome. Por sinal, Thomas até se sentia bem vestido de mulher. Quando acabou o tempo do cross-dressing (os rapazes eram agora homens), alistaram-se no exército. A elegância da escrita de Barry faz do romance uma elegia. Nenhuma vulgaridade ou proselitismo belisca a intriga, pontuada de fina ironia e anotações subtis sobre questões identitárias: as idiossincrasias irlandesas de Thomas («O irlandês acha que tem razão e é capaz de matar toda a gente para fazer valer a sua ideia»), o sangue índio de John, virilidade vs ambivalência, etc. Os episódios de batalha são descritos com invulgar fluência, com o seu estendal de medos, hidropisia, escorbuto e varíola. De certo modo, um romance de formação. Quatro estrelas. Publicou a Bertrand.
Escrevo ainda sobre Frankie e o Casamento, terceiro e penúltimo romance de Carson McCullers (1917-1967). Não tendo a mística dos anteriores, que fizeram lenda, não deixa por isso de ser uma vigorosa narrativa auto-referencial. Como a autora, também o pai de Frankie foi proprietário de uma joalharia. A história de Frankie, uma rapariguinha de doze anos, órfã de mãe, atinge o paroxismo por ocasião do casamento do irmão mais velho: «Era a manhã diferente de todas as manhãs que conhecera…» Tudo se passa num fim-de-semana de Agosto de 1944, algures no Sul americano. Frankie é aquilo a que chamamos uma adolescente disfuncional, enredada nos seus fantasmas, casmurra, estranha a convenções, “estrangeira” em todos os lugares. Como de regra, McCullers é imbatível nos retratos psicologistas. A partir de certa altura, Frankie passa a denominar-se F. Jasmine. Hoje, uma personagem com doze anos seria tratada como criança, sem os traços de carácter que McCullers lhe atribui. Mas nos anos 1940 foi possível imaginar Frankie como alguém que fantasiava uma união a três: ela, o irmão que vai casar, e Jasmine, a futura cunhada. A escrita por vezes elíptica permite vários ângulos de leitura. Cinco estrelas. Publicou a Relógio d’Água.