Hoje na Sábado escrevo sobre Viagens com o Charley, de John Steinbeck (1902-1968), um dos pilares do cânone americano, autor de clássicos da literatura em qualquer idioma, como, por exemplo, As Vinhas da Ira, romance de 1939 que para sempre fixou o seu nome. Publicado no ano em que recebeu o Prémio Nobel da Literatura, a singularidade deste relato de viagem radica no tom desembaraçado da narrativa. O autor assume o carácter autobiográfico do livro, atípico no conjunto da bibliografia. Em 1960 descobriu que não conhecia o seu próprio país, porque viver em Nova Iorque, com ocasionais visitas a Chicago e São Francisco, não significava conhecer a América, razão que o levou à peregrinação aqui descrita. Planeou tudo ao pormenor, começando por mandar construir uma camioneta apta a vencer adversidades logísticas e atmosféricas. Chamou-lhe Rocinante em homenagem ao Quixote. Dispunha de cama, fogão, frigorífico, calorífero, retrete química, mosquiteiros, acessórios de vária índole, etc., mas tendo de recorrer a motéis para «um banho quente e abundante». Vantagem suplementar: «Era quase tão fácil de conduzir como um carro de passageiros.» Aos 58 anos, Steinbeck cumpria um velho sonho da infância, tentando apaziguar o «vírus do desassossego». Em vez da mulher, levou consigo o Charley, um cão-d’água bleu, nascido em Bercy, habituado a reagir a ordens dadas em francês. (O volume inclui foto desse companheiro.) Mas Charley padecia de prostatite, e a situação só foi resolvida no Texas por um veterinário de Amarillo. Essa fase da viagem contou com a presença da mulher, vinda de Nova Iorque para celebrarem juntos o dia de Acção de Graças. Os milhares de quilómetros percorridos da costa Leste à costa Oeste dão azo a páginas brilhantes, onde se misturam apontamentos nostálgicos, um agudo sentido da realidade e das condições de vida da classe trabalhadora (característica da obra do autor), sketches do quotidiano das pessoas comuns, mas também o escrutínio das «práticas decadentes dos texanos ricos», tudo matizado por notações de humor e um peculiar distanciamento crítico. É de uso dizer-se que um livro se define pela primeira frase. Neste caso, o punch está na última. Cinco estrelas. Publicou a Livros do Brasil.