quinta-feira, 14 de julho de 2016

JORGE DE SENA


Hoje na Sábado escrevo sobre a sequência de contos Os Grão-Capitães, obra emblemática de Jorge de Sena (1919-1978). Com uma década de intervalo, regressou às livrarias. Escrito durante o exílio brasileiro, seria preciso esperar pela queda da ditadura para que o livro fosse publicado em Portugal. Dois dos nove contos agora reunidos haviam sido publicados na revista O Tempo e o Modo, em 1966 e 68, truncados pela censura. Seria pleonástico sublinhar as capacidades narrativas de Sena, autor de Sinais de Fogo (1979), um dos romances mais importantes do século XX em língua portuguesa. Contudo, importa pôr o acento tónico no desembaraço com que Sena ficciona as sexualidades itinerantes. Dito de outro modo, a forma como desmonta os mitos associados à normatividade heterossexual. No conto Os Irmãos, ambientado na Lisboa de 1945, diz o prostituto: «Viu aqueles gajos que estavam ali sentados? […] Gajos como aqueles paneleiros não deviam poder entrar nos cafés dos homens. […] E, distraidamente, as mãos saem-lhe dos bolsos e afagam suavemente as nádegas.» Noutro registo, O Bom Pastor (um quartel do Porto, em 1943), expõe a difusa linha de fronteira entre identidades sexuais de sinal oposto. O mesmo sucede no epílogo fantasmático de Boa Noite. Três exemplos que antecipam a grand finale de A Grã-Canária. Seria fútil ignorar o contributo de Sena para a inscrição da homotextualidade na literatura nacional, explícita em muitos poemas, mas sobretudo na prosa. A Grã-Canária relata a viagem feita por Sena, como cadete, entre Outubro de 1937 e Fevereiro de 1938, no navio-escola Sagres. O seu ingresso na Marinha de Guerra seria gorado, alegadamente devido a perfil inadequado para oficial, facto lembrado por Arnaldo Saraiva em 1982, originando acesa polémica centrada na questão homossexual. Verdade que o conto permite todas as conjecturas, como o próprio Sena fez notar: «no plano da insinuação torpe, ou virtuosa […] será possível adivinhar, de olho guloso, muita coisa nestas páginas.» Conto admirável, com passagens sem equivalente na nossa ficção, tais como, entre outras, o episódio do bordel de Las Palmas e uma ambígua cena de wrestling entre cadetes: «O outro, com as calças deitadas abaixo e enrodilhadas nos pés, as mãos amarradas…» Indispensável. Cinco estrelas. Publicou a Guimarães.

Escrevo ainda sobre Chega de Saudade, do brasileiro Ruy Castro (n. 1948). Não é novidade: as literaturas portuguesa e brasileira vivem de costas voltadas uma para a outra. A situação agravou-se nos últimos cinquenta anos. Isso explica que o autor tenha apenas três livros publicados em Portugal: Carnaval no Fogo, obra-prima sobre a fundação do Rio de Janeiro; Era no tempo do rei, romance sobre a chegada da Corte portuguesa ao Brasil; e Chega de Saudade, a história da Bossa Nova. Chega de Saudade foi publicado em 1990, mas a edição portuguesa é a de 2016, profundamente revista pelo autor. Só uma prosa de primeiríssima água como a de Ruy Castro faria da história da Bossa Nova uma obra de referência. Nove em cada dez portugueses não faz a mais pequena ideia de quem o autor fala. Quem, com menos de 70 anos, sabe quem foi Maysa Matarazzo? Mas o brilhantismo da narrativa permite ler o livro como um romance: factos, pessoas, intrigas, música e sobressaltos estão lá, mais os retratos nítidos de Vinicius de Moraes, Tom Jobim, João Gilberto e outros. O volume inclui portfolio fotográfico, uma cançãografia e índice remissivo. Quatro estrelas. Publicou a Tinta da China.