quinta-feira, 5 de maio de 2016

HERBERTO HELDER


Hoje na Sábado escrevo sobre Letra Aberta, de Herberto Helder (1930-2015). Não era expectável que, um ano após a sua morte, aparecesse um novo livro. Contudo, foi o que aconteceu. Olga Lima, a viúva, escolheu e coligiu poemas inéditos e deu à estampa um pequeno volume com trinta e três poemas. Alguns fac-símiles constam da edição. Irá surgir uma arca-Herberto? Nos últimos livros que publicou em vida, A Morte Sem Mestre (2014) e Poemas Canhotos (2015), sobretudo no primeiro, Herberto queimou todas as pontes que o ligavam à tradição que ele próprio criou. Letra Aberta interrompe o desvio. Podemos presumir o óbvio: tratando-se de poemas que o autor não publicou por qualquer razão, estes inéditos pertencem a fases coincidentes com a obra pretérita. Uma nota editorial poderia esclarecer a data de factura, mas ela não existe. O único esclarecimento remete para opções de fixação de texto em quatro poemas. Em todo o caso, estamos longe do timbre visionarista: «eu cá acho que sim, / acho que apesar de tudo escrevi um poema aceitável, / um poema que amadurou em mim ao longo de oitenta anos […]» Os leitores corroboram. Herberto é sinónimo de poema contínuo. Quatro estrelas. Publicou a Porto Editora.

Escrevo ainda sobre Montaigne, de Stefan Zweig (1881-1942). A concisão é de regra: menos de cem páginas são bastantes para nos dar a conhecer a vida e o pensamento do “pai” do Cepticismo, o celebrado inventor do ensaio, Michel Eyquem, senhor de Montaigne. Sobre a sua personalidade, Zweig sublinha: «Só aquele que foi obrigado a viver numa época em que a guerra, a violência e a tirania das ideologias ameaçavam o futuro de cada um e, nela, a sua essência mais preciosa, a liberdade individual, sabe quanta coragem, rectidão e energia são precisas para se manter fiel ao seu eu mais profundo…» Zweig é perspicaz na forma como dilucida Montaigne, alguém que confessou ter casado por conveniência, reconhecendo «o direito, mais às mulheres do que aos homens, de terem um amante…» Nascido em 1533, Montaigne morreu cedo (1592), facto que o não impediu de ser filósofo, magistrado, presidente da Câmara de Bordéus, conselheiro e agente secreto de Henrique de Navarra, viajante, amigo íntimo de Étienne de La Boétie (o precursor daquilo a que chamamos desobediência civil, autor do Discurso sobre a Servidão Voluntária), a quem dedicará os Ensaios que fizeram dele um homem célebre. Zweig enfatiza a importância dessa relação, citando La Boétie. É pena que as duas tradutoras do livro não tenham assinalado a proveniência dos textos. Bem vistas as coisas, este Montaigne é o monólogo interior com que Zweig se confronta com o biografado: «Montaigne só me emociona e me interessa hoje por isto: saber como, numa época semelhante à nossa, ele se libertou interiormente…» É impossível não estabelecer um nexo causal entre as escolhas pessoais de um e outro. O livro foi escrito durante o exílio brasileiro (austríaco de origem judaica, Zweig refugiou-se em Petrópolis entre 1940 e 1942), ocorrendo a sua primeira publicação quarenta anos após o suicídio do autor e da sua segunda mulher. A vasta bibliografia sobre Montaigne não dispensa a leitura deste magnífico ensaio biográfico de Zweig. Cinco estrelas. Publicou a Assírio & Alvim.