Hoje na Sábado escrevo sobre Purity, o romance mais recente de Jonathan Franzen (n. 1959). O livro mantém-se na zona do “realismo histérico” que tem caracterizado a sua obra. Dito de outro modo, o género de ficção que não abdica de personagens e factos reais. Não é inocente que Andreas diga: «Olhem para mim. O meu pai pertence ao Comité Central e eu vivo na cave de uma igreja, mas alguma vez me vêem sisudo?» Andreas, suposto primo em segundo grau de Markus Wolf, o todo-poderoso chefe da Stasi, a polícia política da Alemanha de Leste. Afinal de contas, o núcleo duro do romance é o totalitarismo nas suas versões recicladas. A clave paródica salva o leitor menos apetrechado de supor que se enganou no livro. Mais do que o nome da protagonista, o título traduz a obsessão com a ausência de mácula conforme à pureza “moral” de Karl Kraus, autor que Franzen traduziu. A partir daí, a polifonia de pontos de vista faz o resto. Cada uma das sete partes do livro tem enfoque particular: “Purity em Oakland”, “A República do Mau Goso”, “Excesso de Informação”, “Moonglow Dairy”, “[le1o9n8aOrd]”, “O Assassino” e “Vem a Chuva”. Um caleidoscópio de revelações. Podia ser um romance do século XIX em cenário pós-punk. Já sabemos que Franzen nunca escreve para o lado de onde sopra o vento. A Internet é a sua bête noir. A eficácia de Slicon Valley um upgrade do Grande Irmão (somos testemunhas de como a realidade fez de Orwell um obsoleto caso de estudo). Do mesmo passo, a “bondade” das energias renováveis subsume um sarcasmo corrosivo, não isento de ironia. Pip, a empregada da Renewable Solutions, está no centro da intriga. Pip, aliás Purity, trabalha numa espécie de call center onde tenta vender energia limpa, ou seja, «derivada do lixo», a consumidores de subúrbio. Até que desiste e parte para a Bolívia, onde descobre que o «cheiro a bosta de vaca», em contraponto com a assepsia da Califórnia, constitui a suprema «revelação olfativa». Franzen cita Shakespeare com a naturalidade de quem fala da chuva. O mesmo se diga dos equívocos e desaires de Pip, entalada entre a sua própria identidade, o Projecto Luz Solar e o fundo fiduciário do avô. Ou o quotidiano de Berlim, quando a cidade eram duas, e toda a gente do outro lado do Muro «queria autorização para viajar, mais ainda do que queria automóveis.» Prosa escorreita, alheia a qualquer tipo de foguetório semântico. Em suma, não encontramos todos os dias a voz de um grande autor. Cinco estrelas.
Escrevo ainda sobre J, de Howard Jacobson (n. 1942), o britânico que faz questão de sublinhar a forma idiossincrática como vive a identidade judaica, descrevendo-se a si mesmo como “uma Jane Austen judia”. Chegou agora às livrarias esta ficção distópica e, salvo melhor informação, o segundo livro do autor a ser traduzido no nosso país. O primeiro foi o aclamado A Questão Finkler, vencedor em 2010 do Man Booker Prize. Além de romances e ensaios, Jacobson escreve para televisão, tornando-se uma figura popular com o primeiro episódio de uma série sobre a Bíblia. E promove performances públicas, como a recente Palhaços em Rebelião, um protesto arty com mulheres e homens nus junto ao muro que separa a Cisjordânia de Israel. Com J, a obra mais recente, o autor pretende suscitar uma discussão sobre a sociedade actual, em termos equivalentes aos da controvérsia gerada por Orwell com 1984. Humor negro e distopia fazem do romance uma parábola do totalitarismo manso que caracteriza o quotidiano dos países avançados, mansidão que pode acabar em extermínio colectivo. O romance disseca o que aconteceu nesse hipotético passado recente. Apocalipse irracional, uma das personagens recorda o tempo em que havia jornais e programas sérios na rádio e na televisão. Publicou a Bertrand. Três estrelas.