quinta-feira, 1 de agosto de 2019

LIMA & COHEN


Hoje na Sábado escrevo sobre o volume de Obra Reunida de Manuel de Lima (1915-1976), o escritor, musicólogo, crítico e artista plástico a quem chamavam o careca evidente. Hoje quase ninguém se lembra dele. Depois de se formar no Conservatório de Lisboa, Manuel de Lima foi violinista de salão em navios da marinha mercante das carreiras de África e do Brasil. A carreira literária é posterior. Mas o exílio na Venezuela contribuiu para o descaso. Os contos que escreveu foram agora coligidos em Obra Reunida, volume de apuro irrepreensível, como são por regra os que saem das mãos de Vladimiro Nunes. Surrealista mal amado pela crítica, Lima deixou obra escassa. Estreado em 1944 com o conto Um Homem de Barbas, prefaciado por Almada Negreiros (a reedição de 1973 acrescentou novos contos), publicaria mais tarde Malaquias ou a História de Um Homem Barbaramente Agredido (1953), A Pata do Pássaro Desenhou uma Nova Paisagem (1972) e a novela O Clube dos Antropófagos (1973), que começara por ser, em 1965, uma peça de teatro. Não confundir com a peça escrita em co-autoria com Natália Correia — Sucubina ou a Teoria do Chapéu, 1952 —, omissa do presente volume. A vida errática terá contribuído para o afastar dos círculos dominantes. Depois de anos de ligação amorosa, zangou-se com Natália Correia. Almada Negreiros também se afastou depois do patrocínio inicial. O grupo do Café Gelo desfez-se. Com Cesariny e Luiz Pacheco manteve sempre uma relação bipolar. Os panfletos incomodaram muita gente. João Gaspar Simões e Óscar Lopes, gurus da crítica, não gostavam dos seus livros. Absurdizante, diziam. Era demasiado humor negro e nonsense para os hábitos indígenas. Por fim, a partida para a Venezuela “apagou-o” da vida literária portuguesa. Além dos quatro livros, o volume inclui uma extensa e muito esclarecedora introdução de Vladimiro Nunes (com Luiz Pacreco, editor e amigo de Lima, no papel de deep throat…), retratos, desenhos, correspondência, fac-símiles de manuscritos, da certidão de nascimento e do assento de óbito, bem como reproduções de pinturas suas que fazem parte do espólio do Museu Carlos Machado, de Ponta Delgada. Este belo volume resgata do esquecimento a obra e a vida deste surrealista esquecido. Quatro estrelas. Publicou a Ponto de Fuga.

Escrevo ainda sobre Chama, o livro póstumo de Leonard Cohen (1934-2016). Muita gente nunca terá tido a noção exacta, mas este canadiano de origem judaica não foi só um cantor extraordinário. É também um grande poeta do amor e do desespero. Além de dois romances, publicou quinze colectâneas de poemas. «Escrever era a sua razão de ser», lembra o filho, Adam, que editou o livro e assina o prefácio. Chama é um testamento: o volume colige poemas, desenhos, autoretratos corrosivos, canções, versos dispersos, entradas de diário, fac-símiles e o discurso de aceitação do Prémio Príncipe das Astúrias, que recebeu em 2011. Existe índice de poemas e letras. À laia de apêndice, os versos originais estão agrupados a partir da página 301. Poeta, escreveu versos que ficaram gravados na nossa memória: «Tive de enlouquecer para te amar / Tive de descer até ao abismo […] Tive de ser pessoas que odiava / Tive mesmo de não ser ninguém». Sim, a voz, inconfundível, faz falta. Mas só faz falta porque não nos esquecemos. Cinco estrelas. Publicou a Relógio d’Água.