sábado, 17 de fevereiro de 2018

DO ENRUSTIMENTO, 2

Miguel Vale de Almeida — «Quando os discursos críticos contra a homonormatividade se transformam em desprezo pelos pequenos gestos e pequenos avanços que beneficiam vidas, e ainda por cima glorificam os armários com uma postura superior de eu estou acima da banalidade dos termos em que vocês colocam as questões [...]»

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

DO ENRUSTIMENTO

Em Portugal, como em toda a parte, existem muitos paneleiros. As pessoas aceitam os paneleiros porque eles fazem parte da ordem ‘natural’ das coisas. Acontece o mesmo com as bichas fluorescentes. O ‘folclore’ não belisca o establishment. O fantasma identitário, o ressabiamento social e a homofobia militante fazem pontaria aos homossexuais tranquilos e ao activismo gay. Dois homens a viverem a sua conjugalidade perturbam o conservadorismo dominante. Por maioria de razão, um activista gay obriga a reflectir. Homem a abater, portanto. Manuel Clemente, o cardeal, subscreveria as teses do enrustimento mais azedo.

FERNANDO LEMOS


Descobri Fernando Lemos quando, em 1963, o Círculo de Poesia da Moraes reeditou Teclado Universal, cuja primeira edição, publicada em 1953 pelos Cadernos de Poesia, não conhecia. Mais tarde foram os extraordinários retratos de O’Neill, Cesariny, Sophia, Vespeira, Glicínia, Arpad & Vieira, Azevedo, Casais, Sena e tantos outros amigos. Não fotografo gente que não conheço bem. A vaidade que o Alberto de Lacerda tinha do retrato que ele lhe fizera. Uma parte da obra de pintor foi-me revelação em 2011, na Fundação Arpad-Vieira.

Ontem, finalmente, pude ver o filme que Jorge Silva Melo levou dez anos a completar — como, não é retrato?. E como valeu a pena! Auditório do CAM da Gulbenkian a rebentar de gente para oitenta minutos de pura magia.

À beira de completar 92 anos, Fernando Lemos é um prodígio de energia. Este homem que Portugal perdeu em 1953, o ano da partida para o Brasil (a convite de Jaime Cortesão), é uma figura incontornável das artes plásticas, também portuguesas, mas sobretudo brasileiras, porque os últimos 65 anos foram brasileiros. Acontece aos melhores: Maria Helena é francesa, Paula inglesa e Lemos brasileiro. Custa, mas é verdade. Não sei se o filme vai ser reposto em sala ou apenas na televisão. A maioria dos portugueses mais novos nunca ouviu falar de Fernando Lemos, fotógrafo excelentíssimo, artista plástico, resistente antifascista, homem de mil interesses. Era bom que o filme o resgatasse do nicho da memória dos happy few.

Imagem: Lemos fotografado por German Lorca. Clique.

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

ERIC NEPOMUCENO


Hoje na Sábado escrevo sobre Bangladesh, Talvez, do brasileiro Eric Nepomuceno (n. 1948). O volume, que chegou agora à edição portuguesa, colige contos de livros anteriores do autor, jornalista e tradutor de renome que viveu exilado na Argentina durante os anos da ditadura militar brasileira. A um leitor atento não passarão despercebidas as oscilações de registo discursivo que moldam este conjunto de dezasseis narrativas breves. Persiste, no entanto, a ideia de um patchwork de notas avulsas. Dito de outro modo, de ‘rascunhos’. Veja-se o segundo texto, Dizem que ela existe. Trata-se, de facto, de cinco apontamentos para histórias a haver. O primeiro (sobre o medo da trovoada) cheio de possibilidades, e depois metafísica da porteira. Na segunda parte do livro, se assim se pode dizer, Coisas da Vida resgata o conjunto da toada soixante-huitard. É o texto mais conseguido, e mesmo assim não encontramos nele a garra semântica e o desembaraço transgressor da ficção brasileira. Ao contrário da polifonia que caracteriza os melhores dos seus pares, Nepomuceno tem uma escrita lisa. Ter uma escrita lisa não é defeito. O óbice é ter pouco para contar. Duas estrelas. Publicou a Porto Editora.

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

ALBIE SACHS


Por iniciativa da sua Faculdade de Direito, a Universidade Nova de Lisboa atribui hoje a Albie Sachs, antigo juiz do Tribunal Constitucional da África do Sul, o título de Doutor Honoris Causa. A cerimónia tem lugar às 17:00 na Reitoria da Nova. Teresa Pizarro Beleza, directora da Faculdade de Direito, fará o elogio do doutorando.

Com 83 anos, Albie Sachs é um mítico activista dos direitos humanos. Opositor do regime do apartheid, esteve preso várias vezes. Autorizado a partir para o Reino Unido em 1966, leccionou Direito e fez campanha pelo ANC. Em 1977 foi para Moçambique, onde criou uma cátedra de Direito na Universidade Eduardo Mondlane, de Maputo. Nos anos de permanência na capital moçambicana trabalhou com Oliver Tambo, líder do ANC no exílio. Mas, em 1988, o National Intelligence Service (a polícia secreta sul-africana) colocou-lhe uma bomba no carro e Sachs ficou sem o braço direito e a vista de um olho. O atentado de Maputo não o impediu de prosseguir os trabalhos conducentes à futura Constituição da África do Sul, bem como de relatar o sucedido em livro: Soft Vengeance of a Freedom Fighter (1989), do qual existe tradução portuguesa.

De regresso ao país Natal, foi nomeado (1994) por Mandela juiz do Tribunal Constitucional. A nomeação foi alvo de controvérsia na medida em que Sachs não se abstivera de tornar pública a prática de tortura em campos do ANC. Entre outros casos, defendeu no TC a legalidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo, tornando a África do Sul, em 2006, o único país africano onde a Lei estabelece esse direito. Os sul-africanos também lhe devem a abolição da pena de morte, bem como a liberalização, contra a doutrina do presidente Thabo Mbeki, da venda de medicamentos anti-retrovirais para combater a Sida. Da sua bibliografia, um dos títulos mais recentes é The Strange Alchemy of Life and Law (2009). Albie Sachs casou duas vezes e tem três filhos, dois do primeiro casamento e um do segundo. Laureado em vários países, chegou a vez de Portugal reconhecer a estatura deste homem singular.

terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

NATÁLIA NUNES 1921-2018


Natália Nunes morreu hoje. Tinha 96 anos. Romancista, memorialista, dramaturga, ensaísta e tradutora, Natália Nunes estreou-se em 1952, com o livro de memórias Horas Vivas. Próxima do existencialismo, destacaria da sua vasta obra ficcional Autobiografia de uma Mulher Romântica (1955), Regresso ao Caos (1960), Assembleia de Mulheres (1965), O Caso de Zulmira L. (1967), A Nuvem (1970), Da Natureza das Coisas (1985), As Velhas Senhoras e Outros Contos (1992) e Vénus Turbulenta (1997). A peça de teatro Cabeça de Abóbora (1970) é uma farsa demolidora da burocracia dos Estados totalitários. Na área do ensaio, As Batalhas Que Nós Perdemos (1973) colige estudos sobre Augusto Abelaira, Cardoso Pires e Raul Brandão. Um extenso ensaio sobre Finisterra, de Carlos de Oliveira, foi publicado em 1997: A Ressurreição das Florestas. Num tempo em que o feminismo não era uma profissão, Natália Nunes antecipou-se ao seu tempo, defendendo com desassombro a real emancipação das mulheres. Não o fez em comícios: a Obra responde por si.

Depois de traduzir Dostoievski, Tolstoi, Simonov e Elsa Triolet, Natália Nunes conseguiu a proeza de, em pleno salazarismo, traduzir La Bâtarde, o livro maldito de Violette Leduc, que assim chegou de forma admirável à língua portuguesa. Em 1945 casou com o cientista, pedagogo e professor Rómulo de Carvalho, mais conhecido pelo pseudónimo de António Gedeão. Durante quarenta anos, Natália Nunes colaborou com regularidade nos títulos mais relevantes da imprensa. Foi conservadora da Torre do Tombo (1957-68) e fez parte da última direcção da Sociedade Portuguesa de Escritores, extinta pelo Estado Novo em Maio de 1965. É mãe da escritora Cristina Carvalho.