domingo, 6 de junho de 2021

LACERDA


UM POEMA POR SEMANA — Para hoje escolhi Depois de Veres Guerra e Paz de Sergei Bondarchuk de Alberto de Lacerda (1928-2007), poeta duplamente expatriado, uma das grandes vozes da poesia portuguesa da segunda metade do século XX. Simplificando muito, pode dizer-se que a sua obra vive em permanente confronto com a tripla pulsão da melancolia, da liberdade e da iconoclastia.

Natural da Ilha de Moçambique, homossexual, Lacerda veio para Portugal pouco antes de completar 18 anos. Em Lisboa depressa fez amizade com Cinatti, Sophia, Cesariny, David, Ramos Rosa, Raul de Carvalho e Luís Amaro. Em 1950, com David, Couto Viana e Luiz de Macedo fundou as folhas de poesia Távola Redonda.

Mas foi curto o intervalo português: no Verão de 1951, quando o n.º 8 dos Cadernos de Poesia, então dirigidos por Jorge de Sena, lhe foi integralmente dedicado, partiu para Londres, onde viveu até morrer.

Na capital britânica trabalhou na BBC, divulgando a cultura portuguesa. Num curto espaço de tempo frequentava os salões literários mais exclusivos da cidade. Talvez por isso, Herberto Helder tenha dito que «Alberto de Lacerda tem Londres invadida por sofás» [cf Photomaton & Voz, 1979]. Tinha 23 anos quando Edith Sitwell o convidou para almoçar com T. S. Eliot e William Walton. Não por acaso, foi em Londres que foi publicado o seu primeiro livro, 77 Poems (1955), sob chancela da Allen & Unwin e prefácio do sinólogo Arthur Waley. Esse livro de estreia teve calorosa recepção crítica por parte de gurus como Quentin Stevenson, J. M. Cohen e David Wright. E terá sido no momento em que o Times Literary Supplement dedicou ao livro uma recensão atenta, que Portugal começou a fazer de conta que ele não existia.

Em 1959, a convite de Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, permaneceu um ano no Brasil, dando conferências e recitais em universidades e outras instituições. Finalmente, em 1961, um livro em Portugal: «Palácio». Críticos empenhados, como Sena, Eduardo Lourenço e Ramos Rosa, sempre o elogiaram, mas a ortodoxia vigente ignorava.

Entre 1967 e 1993, Alberto de Lacerda leccionou em universidades americanas, primeiro em Austin (no Texas), depois em Nova Iorque, por último em Boston, onde esteve a partir de 1972. Durante esses vinte e seis anos, passava um semestre de cada lado do Atlântico.

Um dia, já depois do 25 de Abril, o dirigente máximo do Instituto de Alta Cultura “descobriu” que Lacerda não tinha habilitação própria, ou seja, licenciatura. E não hesitou: mandou rescindir o contrato. Incrédulas, as autoridades académicas americanas não queriam acreditar que o “seu” professor de Poética fosse posto de lado por tal motivo. E fizeram o óbvio: contrataram-no directamente, não aceitando receber o licenciado proposto por Portugal.

Tal como acontecera em Inglaterra, o convívio com a intelligentzia norte-americana foi fácil. Privou com Marianne Moore, Thom Gunn, Robert Duncan, David Hockney e outros. Em 1969 tinha uma antologia publicada pela Universidade do Texas, Sellected Poems. Foi o primeiro e único autor de língua portuguesa a dar um recital da sua poesia na Biblioteca do Congresso, em Washington. Em 1973, editou Maio, International Poetry Magazine, de que saiu um único número, com colaboração de Cesariny, Guillén, Octavio Paz, Murilo Mendes, Dominique Fourcade e Augusto de Campos.

Coleccionador de arte, ele próprio autor de colagens (em 1987 expôs pela última vez na Sociedade Nacional de Belas Artes de Lisboa), são lendárias as suas amizades com Vieira da Silva, Arpad Szenes, Paula Rego, Victor Willing, Menez, Jorge Martins, etc., artistas sobre quem escreveu na imprensa portuguesa mas também na Encounter, The Listener e outras publicações. 

Também em 1987, a sua colecção privada de artistas do vasto mundo (arte, correspondência, retratos) foi mostrada ao público no Centro de Arte Moderna da Gulbenkian, tendo a Fundação editado um precioso catálogo com texto introdutório de Eduardo Lourenço. Outro volume indispensável para “mergulhar” no universo de Lacerda é o álbum fotográfico The Sea That Lies Beyond My Rocks, organizado por Luís Amorim de Sousa e publicado em 2010 pela Assírio & Alvim em parceria com a Fundação Mário Soares.

Em 27 de Agosto de 2007, a um mês de completar 79 anos, foi encontrado em coma na sua casa de Londres, pelo crítico de arte John McEwen (iam almoçar juntos), seu confidente e autor do obituário publicado no Independent. Hospitalizado de seguida, morreria horas depois.

O poema desta semana pertence a Mecânica Celeste (1994), que colige poemas escritos entre 1963 e 1970. A imagem foi obtida a partir de Oferenda II, segundo volume da obra poética quase completa, publicado pela Imprensa Nacional em 1994.

[Antes deste, foram publicados poemas de Rui Knopfli, Luiza Neto Jorge, Mário Cesariny, Natália Correia, Jorge de Sena, Glória de Sant’Anna, Mário de Sá-Carneiro, Sophia de Mello Breyner Andresen, Herberto Helder, Florbela Espanca, António Gedeão, Fiama Hasse Pais Brandão, Reinaldo Ferreira, Judith Teixeira, Armando Silva Carvalho, Irene Lisboa, António Botto e Ana Hatherly.]

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