terça-feira, 31 de dezembro de 2019

O RÉVEILLON DE 1974


A última passagem de ano que fiz em Lourenço Marques foi a de 1974, tinha então 25 anos. Nos meses anteriores, a cidade tinha vivido dois momentos de tragédia.

Primeiro, a tentativa de secessão branca de 7 de Setembro de 1974, o sábado em que foi assinado o Acordo de Lusaka, documento que definiu os termos e condições da independência de Moçambique.

Nessa tarde, um grupo de antigos colonos reunidos no denominado Movimento de Moçambique Livre ocupou as instalações do Rádio Clube e fechou o aeroporto da cidade. Depressa percebi que a situação era muito grave: milhares de pessoas na rua, invasão da cadeia central para libertar os pides, jornais pró-independência (como o Notícias e A Tribuna) tomados de assalto, Associação Académica incendiada, amigos refugiados em locais improváveis, etc. Durante quatro dias, a situação ficou fora de controlo. O MML contava com o apoio de Spínola, mas o general não abriu a boca. Na tarde do dia 10, uma companhia de Comandos, oriunda do Niassa, reabriu o aeroporto e desocupou o Rádio Clube. Nas 48 horas que se seguiram, as autoridades da África do Sul e da Suazilândia facilitaram a passagem de mais de cinquenta mil brancos. No dia 12 chegou o almirante Vítor Crespo, investido pelo MFA como alto-comissário português. No dia 20, nove meses antes da independência, tomou posse o Governo de transição. A tranquibérnia teve como saldo centenas de mortos.

Seis semanas passadas, o fatídico 21 de Outubro, acção de agitprop pensada ao milímetro. Nesse dia, a partir do anoitecer, um vento de insânia varreu os bairros da periferia e todas as povoações num raio de vinte quilómetros. Por vento de insânia entenda-se casas pilhadas e incendiadas, mulheres violadas, crianças brancas penduradas em ganchos de talho, negros esquartejados, corpos decapitados, etc. Nos bairros burgueses da Maxaquene, Ponta Vermelha, Polana e Sommerschield, nada sucedeu. O aeroporto foi encerrado, mas as fronteiras com a África do Sul e a Suazilândia mantiveram-se abertas durante toda a noite. O número de mortos nunca foi oficialmente divulgado. A imprensa afecta à Frelimo falou de cem. Médicos e enfermeiros terão identificado para cima de dois mil.

Face a tudo isto, não admira que o réveillon fosse encarado com todas as precauções. Foi então que um amigo, o Américo Rola Pereira, decidiu organizar uma passagem de ano a bordo de um dos ferry boats que faziam a ligação com a Katembe. Fretou-o, e o barco partiu do cais da Fazenda às oito da noite, ficando a vogar na baía até à manhã seguinte. Quem quisesse regressar a casa mais cedo podia fazê-lo num gasolina destinado para o efeito.

Não sei se foi o último baile do Império, mas foi assaz divertido. Duas “orquestras” revezaram-se, o catering era bom e todos nós, embora conscientes da débâcle, estivemos distendidos nessa noite esplêndida.

O réveillon de 1975 já foi no Estoril.

Na imagem, Lourenço Marques vista da praia da Katembe. Clique.