quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

FORSTER & KIELLAND


Hoje na Sábado escrevo sobre Passagem para a Índia, de E.M. Forster (1879-1970), o ensaísta e escritor inglês que marcou a primeira metade do século XX e viu muitos dos seus romances adaptados ao cinema. Passagem para a Índia foi um deles. O que talvez nem toda a gente saiba é que o romance foi considerado uma das cem obras-primas de sempre. Inspirado nas viagens que o autor fez à Índia e, em particular, na sua experiência (1921-23) como secretário pessoal do marajá de Dewas, Forster focou a sua obra ficcional mais ambiciosa nas convulsões pró-independência que já então abalavam o Raj britânico. O estranho incidente das cavernas de Marabar, envolvendo Adela e Aziz, serve de rastilho ao desenvolvimento da intriga. Ou seja, à explosão das tensões raciais entre colonizadores e colonizados. Não tendo ficado esclarecido se Adela sofrera um ataque de ansiedade generalizada ou apenas efeitos relacionados com eco e claustrofobia, a opinião colonial considerou Aziz culpado de agressão sexual. Que outra coisa, senão um agressor, podia ser um médico muçulmano? Adela está noiva do magistrado local, e o julgamento estabelece uma fractura irremediável. Confusa, Adela contradiz-se, acabando por concluir que tudo não passou de um equívoco. Em consequência, o noivado desfaz-se e ela marca viagem de regresso a Inglaterra. Chandrapore, onde tudo se passa, não existe (a cidade inspira-se em Bankipore), mas as suas características servem de metáfora do compound elitista em que se movem os ingleses: «Os indianos não podem entrar no Clube de Chandrapore, nem como convidados […] As pessoas entravam no Clube com uma calma estudada, à maneira da gente campestre passando entre duas sebes viçosas.» O fio condutor da história ilustra os limites das relações entre indianos e europeus. Homossexual oriundo da classe média e, nessa medida, ciente dos vários patamares sociais da Era Vitoriana, Forster — que foi por mérito próprio um dos Apóstolos de Cambridge — tem um apurado sentido do tema em pauta. Lembrar que, além de outros romances e ensaios, Forster é autor de Aspects Of The Novel, obra de 1927 ainda hoje de leitura obrigatória para quem queira escrever ficção literária. Cinco estrelas. Publicou a Relógio d’Água.

Quando, em 1880, Alexander Kielland (1849-1906) publicou Garman & Worse, romance centrado no quotidiano da alta-burguesia norueguesa nos anos 1840, não podia adivinhar que viria a inspirar, uma década mais tarde, a obra-prima Os Buddenbrooks, de Thomas Mann. Romances de estreia, nos dois casos. O nome é outro, mas Garman & Worse remete para a casa de negócios da família. Além de empresário abastado e escritor (escreveu romances, peças de teatro e ensaios, um deles sobre Napoleão), Kielland foi um político com preocupações sociais pouco comuns nos homens do seu meio. Este ‘romance norueguês’ põe em pauta as clivagens de classe, sendo as principais personagens baseadas nos pais, parentes e amigos íntimos do autor. Em 1882 foi publicada a sequela Skipper Pior, com acção na mesma época e firma. Com o naturalismo no auge, Kielland de certo modo antecipa Proust. A obra vive das minudências discursivas: «A brilhante folhagem verde-escura pendia em ricos aros perto do chão, que estava cheio de nozes das faias.» Traduzido directamente do norueguês por João Reis, Garman & Worse chega à língua portuguesa com alto conseguimento. Quatro estrelas. Publicou a Cavalo de Ferro.