quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

CAETANO & SCHWEBLIN


Hoje na Sábado escrevo sobre Verdade Tropical, a autobiografia de Caetano Veloso (n. 1942) que chegou finalmente a Portugal. Para esta edição comemorativa do vigésimo aniversário da sua publicação, o autor acrescentou um texto que ilustra o seu estado de espírito em 1997, confessando, sem pudor, que escreveu o livro para confrontar Paulo Francis: «conhecer a reação dele parece que me era necessário.» Mas Francis, um crítico célebre que tinha trocado o Rio por Nova Iorque, morreu precisamente em 1997, antes do livro sair: «Ele morreu quando eu esperava a explicitação do diálogo.» Caetano tinha-se exposto a pensar no que diria o implacável mogul. A decepção virou depressão. Fazendo questão de dizer que não é gay, nem bi, nem hetero («Somos sexuais»), Caetano execra as perseguições movidas, um pouco por toda a parte, contra os homossexuais. Cita com detalhe o caso de Cuba, com as óbvias excepções permitidas aos notáveis. Como sabem os seus admiradores, o activismo político do autor passa sobretudo por questões culturais e identitárias. Os incidentes verificados com a edição americana de Verdade Tropical vão com certeza desconcertar quem vive fora do mundo da edição. Isabel de Sena, filha de Jorge de Sena, foi a tradutora da edição da Knopf, e Caetano gostou do que leu. Mas o editor responsável alterou a ordem dos capítulos, rasurou alguns, e mandou uma colaboradora (que não sabia português) reescrever outros. Estas coisas acontecem todos os dias no universo editorial de língua inglesa, mas não é costume os autores comentarem. A edição francesa foi um desastre por ter sido feita a partir daquela. Os dois meses de prisão, antes do exílio em Londres partilhado com Gilberto Gil, são descritos com parcimónia. Sobre a capital britânica, o inesperado: «em dois anos e meio, não fui uma só vez ver uma peça de teatro inglesa, não assisti a um só concerto de música clássica, não entrei numa livraria ou numa biblioteca, e só fui aos museus […] na semana de voltar ao Brasil.» Os leitores portugueses vão com certeza achar curiosas as referências feitas ao actual Governo português, bem como ao cantor Salvador Sobral. Quatro estrelas. Publicou a Companhia das Letras.

Escrevo ainda sobre Distância de Segurança, o primeiro romance da escritora argentina Samanta Schweblin (n. 1978), que há seis anos é conhecida dos portugueses.  Quem leu os contos de Pássaros na Boca (2011) identifica a origem deste livro. A autora controla o imaginário nevrótico com a naïveté e a cadência que associamos à literatura para a infância: dicurso pedagógico, sincopado, não vá o leitor perder-se nos interstícios da história. O expediente não interfere com a recorrente intromissão do obscuro: «A minha mãe disse que aconteceria alguma coisa má. […] Já quase não há distância de segurança, o fio está tão curto…» O fio condutor enreda o plot num amálgama de derivas. Como detonador, um vírus mortal, que tanto pode ser antrax como outro tipo de agente biológico letal, no que parece ser uma alusão enviesada aos produtos agrícolas geneticamente modificados (neste caso, soja). O medo circula no ar. Os animais não são poupados. A terra devastada é ali. Tudo visto, confirma-se que o conto é a forma em que Samanta Schweblin melhor se exprime. Distância de Segurança foi um passo em falso. Duas estrelas. Publicou a Elsinore.