Hoje na Sábado escrevo sobre Não Digam Que Não Temos Nada, de Madeleine Thien (n. 1974), escritora canadense de origem sino-malaia. Trata-se de um dos romances mais aclamados dos últimos anos. O título remete para uma passagem da versão chinesa da Internacional, o hino comunista: «O velho mundo será destruído. De pé, escravos, de pé. Não digam que não temos nada.» Com a intriga focada na China que sobreviveu à Revolução Cultural, e a caução de reminiscências autobiográficas, o romance tem todos os ingredientes para ser um sucesso de público e crítica. A sucessão de prémios aí está para o provar. A partir de Vancouver, a narradora descreve com método o ambiente de uma família de imigrantes, tendo como ponto de partida o massacre da Praça Tiananmen, em Pequim. O pai tinha fugido em 1978 e proibido de voltar à China, mas os brutais acontecimentos de Junho de 1989 levaram-no a partir para Hong Kong, onde acabou por desaparecer. Para as autoridades, ter-se-ia suicidado. É este o detonador do plot, que explica os solavancos que conduziram à China actual. Através de flashbacks recuamos às razões do percurso do pai da narradora e, por sua vez, do pai adoptivo deste, um enigmático professor de música. Mas nem só das sequelas da Revolução Cultural aqui se trata. Thien descreve muito bem as etapas de que Mao Tsé-Tung se serviu para impor a ditadura do proletariado, em especial a reforma agrária, bem como o denominado, e fracassado, Grande Salto, ou seja, a industrialização acelerada que provocaria dezenas de milhões de mortos, a maioria pela fome. Thien não faz proselitismo. A escrita, em regra neutra, tem a desenvoltura dos factos: «Fui recrutado pelo Kuomintang. Felizmente, consegui escapar-me e passar para o exército comunista. Foi pavoroso. Os combates, quero eu dizer. Mas fizemos este país.» É realmente mais fácil perceber a China contemporânea depois de ler Não Digam Que Não Temos Nada. O texto é pontuado por inúmeras remissões culturais (chinesas e ocidentais), bem como por fotos da época versada. Nem umas nem outras servem de ornamento, mas de suporte da narrativa. Notas esclarecedoras encerram o volume. Cinco estrelas. Publicou a Relógio d'Água.
Escrevo ainda sobre O Quarto Enorme, de E. E. Cummings (1894-1962), nome central do Modernismo, poeta, ensaísta, dramaturgo e artista plástico, que em 1922 publicou o relato da sua prisão em França, em Setembro de 1917, no estertor da Primeira Guerra Mundial. Cummings e um amigo foram acusados de espionagem, mas o futuro poeta foi prontamente ilibado, o que não impediu três meses de cativeiro, malgrado diligências diplomáticas conduzidas pelo pai. Tudo se resumia ao espírito anti-guerra que o levou, juntamente com William Slater Brown, a servir como voluntário no corpo de ambulâncias. O episódio teve contornos bizarros, dele resultando O Quarto Enorme, título que remete para a cela comunitária partilhada com dezenas de presos no campo de concentração de La Ferté-Macé. Ilustrado com desenhos do autor, a edição portuguesa segue a versão fixada em 1978 por George Firmage, destinada a «corrigir as omissões e alterações das versões anteriormente publicadas», em especial no tocante à extravagante pontuação: ausência de espaços a seguir às vírgulas e outras diabruras. A narrativa descreve, com mordacidade e muitas vezes em tom pícaro, o quotidiano do campo, sem contemplação pelas autoridades francesas. O leitor que não conheça a poesia de Cummings tenderá a sentir-se perdido. Quatro estrelas. Publicou a Livros do Brasil.