Hoje na Sábado escrevo sobre O Coração é o Último a Morrer, o penúltimo romance de Margaret Atwood (n. 1939), autora que volta a esticar os limites da distopia. Dentro de trinta anos saberemos se ela foi o Jules Verne da transição do século XX para o XXI. Verne publicou nos anos 1860-70 diversas obras de antecipação que preencheram o imaginário de várias gerações. Margaret Atwood investe menos na vertente científica, pondo o acento tónico na mutação civilizacional que tem sido o traço distintivo das últimas décadas: fundamentalismo religioso vs laicismo, totalitarismo vs normas constitucionais, xenofobia vs dissolução de fronteiras, e assim por diante. Quem, tendo lido Órix e Crex (2003) ou O Ano do Dilúvio (2009), tem presente as tramas respectivas, sabe que o colapso da civilização tal como a conhecemos é o foco central da obra da autora. Isto é válido para as questões ambientais e, de forma correlata, para o autoritarismo. Pode parecer-nos absurdo o que acontece com Charmaine e Stan, personagens de O Coração é o Último a Morrer. A questão é: até quando? Até quando isto não rompe o formato de um romance distópico? Charmaine e Stan, vítimas dos Mercados, foram descartados. Ela trabalhava num lar para idosos, ele numa empresa de robótica. O crash deu cabo de tudo, «todo o sistema ruíra», o dinheiro foi pelo cano, mentiras e fraudes fizeram lei: «Na televisão, hordas de peritos de meia-tigela tentavam explicar por que razão aquilo acontecera […] mas tudo isso não passava de suposições da treta.» Agora dormem no carro, um Honda em terceira mão. Servir à mesa, como Charmaine fez durante uma temporada, ou permanecer desempregado por excesso de habilitações, como sucedeu com Stan, não permite alternativa. E depois temos Consiliência, a cidade onde está localizado o Projecto Positrão. Charmaine e Stan tiveram sorte em ser admitidos. Regras simples: mês sim, mês não, cedem a sua liberdade (indo para uma cela de prisão) a troco de uma casa. Não é o romance que inquieta. É o grau de premonição. Quatro estrelas. Publicou a Bertrand.