Hoje na Sábado escrevo sobre A Ira de Deus sobre a Europa, de J. Rentes de Carvalho (n. 1930). A edição portuguesa deste volume de memórias veio desconcertar os leitores que o descobriram quando a Quetzal apostou na publicação sistemática da sua obra. Quem se lembrava de Montedor (1968) ou de O Rebate (1971), livros inaugurais? Mas, nos últimos anos, a crítica tem estado atenta, e o público fez a fortuna de Ernestina (1998), romance entretanto reeditado, bem como dos contos reunidos na colectânea Os Lindos Braços da Júlia da Farmácia (2011), bons exemplos de mestria ficcional. Surgia uma voz nova. A Ira de Deus sobre a Europa é outra coisa. Num prefácio ácido, escrito para a edição portuguesa, o autor descreve as peripécias censórias que rodearam a edição holandesa de 2008 (sem o actual prefácio), de várias formas boicotada pelos próprios editores. Reportando ao período compreendido entre 1956 e 2006, o volume leva por subtítulo Testemunho de Um Meio Século. Nesse prefácio, a propósito da vaga migratória que assola a Europa, Rentes de Carvalho invectiva o que considera «o hedonismo e a ausência de ideais» das sociedades ocidentais, em especial a holandesa, sobre a situação actual: «a Europa tem toda a aparência de presa fácil para um islão que, convicto da sua supremacia e decidido a vencer, não olha a meios nem sacrifícios para impor a sua ideologia. […] Pela sua atitude e ideologia os refugiados do Médio Oriente formam certamente uma ameaça […] o fluxo de refugiados africanos, calamidade de proporções bíblicas, prenuncia uma tragédia…» Houellebecq não diria melhor. Afinal, como defendia Neruda, todos temos o direito a entesourar os nossos equívocos. Estas memórias fazem o retrato dos tiques, carácter, hábitos e costumes dos holandeses e, em particular, de Amesterdão, cidade que há cinquenta anos escolheu para viver, começando por trabalhar nos serviços consulares brasileiros, antes de tornar-se escritor e professor universitário. Rigor e mordacidade: «um país grande na pornografia, na pedofilia, no comércio da droga [porém] campeão da moral.» A estratificação social e cultural é um item bem esgalhado. Por se tratar de um lugar-comum, não podemos dizer o mesmo da xenofobia anti-turca. Mérito maior: o desembaraço narrativo. Três estrelas. Publicou a Quetzal.
Escrevo ainda sobre Da Direita à Esquerda, onde o historiador António Araújo (n. 1966) analisa os últimos trinta anos da sociedade portuguesa, a partir da verificação de que a Esquerda, «mesmo quando se apresenta como radical, parece agora mais reconciliada com a estrutura de classes e de elementos de diferenciação de status…». O Estado Novo caiu em 1974 mas seria preciso esperar dez anos para a poeira assentar. Nos anos 1980 já não havia censura nem guerra colonial, mas, dos dois lados da barricada, o quadro mental tinha cristalizado no baile Patiño. Dito de outro modo, os eighties foram a nossa década prodigiosa. Muito se tem escrito sobre esses anos, mas só agora chegou às livrarias uma síntese coerente do que eles representaram. Ironia e fair play com toda a gente citada pelo nome. Certos “perfis” denotam pouca (ou nenhuma) empatia, mas ninguém pode queixar-se de assassínio de carácter. Escrita limpa e persuasiva. O espectro de temas é vasto: neoconservadorismo, imprensa, edição, lifestyle, memórias ultramarinas, linguagem abrasiva, Cultura, intelectuais, gentrificação, redes sociais, o Povo, «bricolage religioso», etc. Cento e vinte páginas de notas enquadram a narrativa. Inclui índice remissivo. Não há bonecada nem grafismo BD. Quatro estrelas. Publicou a Saída de Emergência.