quinta-feira, 3 de novembro de 2016

LE CARRÉ & ADÍLIA


Hoje na Sábado escrevo sobre O Túnel de Pombos, o livro de memórias de John le Carré (n. 1931), o tipo de obra que deixa toda a gente a salivar. A origem do título vem revelada no prefácio, servindo de parábola à vida e obra do autor, que foi diplomata e trabalhou durante vários anos nos serviços secretos britânicos. Ainda por lá andava quando publicou os primeiros quatro livros, entre eles o celebrado O Espião que Saiu do Frio (1963). Isso explica a necessidade do pseudónimo, forma de tornear a Lei dos Segredos Oficiais. O Túnel de Pombos consiste numa colecção de episódios que pontuam a vida do autor. Trinta capítulos são inéditos, os outros oito tiveram publicação prévia entre 1994 e 2014 na Inglaterra e nos Estados Unidos. A dificuldade reside na escolha, porque le Carré tem uma escrita de primeiríssima água e um sentido de humor vintage. A introdução sinaliza o modus operandi do livro: «Estas são histórias verdadeiras, contadas de memória […] A verdade real reside, se reside algures, não nos factos, mas nos matizes.» Fica tudo dito. No texto mais longo e duro do livro, le Carré expõe a complicada relação com o pai: «Demorei muito tempo a conseguir escrever sobre Ronnie, vigarista, fantasista, preso ocasional e meu pai.» Os restantes têm outro carácter. A partir de incidentes da vida diplomática, filmes realizados com base em livros seus, a Guerra Fria, a presença de ex-nazis de altas patentes no sistema judicial e na polícia da antiga RFA, o apoio de segmentos da classe média alemã ao grupo Baader-Meinhof, o momento em que Brodsky soube que tinha ganho o Nobel da Literatura de 1987, Alec Guinness doublé de Smiley, os preparativos para uma entrevista com Bernard Pivot, o chalé suíço, as idiossincrasias de Richard Burton, os encontros com Arafat, a coragem do repórter de guerra Jerry Westerby, o degelo de Gorbachev, o esquizofrénico encontro com um dos patrões da máfia russa na Moscovo de 1993 (o pós-Perestroika encontra-se dissecado em três romances seus), o cartão de crédito de Stephen Spender, etc., le Carré preenche quase quatrocentas páginas de leitura compulsiva e imprescindível. Cinco estrelas. Publicou a Dom Quixote.

Escrevo ainda sobre Bandolim, Adília Lopes (n. 1960). Após trinta livros de poesia, chegou o tempo de Adília escrever parte das suas memórias. Bandolim não é outra coisa senão um diário, ilustrado com uma dúzia de retratos. Não faz sentido metê-lo numa colecção de poesia. O livro dispensa a “nobilitação”. Todas as anotações aqui reunidas corroboram a persona de Adília. Histórias da infância e adolescência, ditos em família, apontamentos de Lisboa e em especial sobre a zona de Arroios, participações em festivais de poesia, episódios da vida escolar, Kristeva e a teoria das catástrofes, a gata Faruk, Amadeo no Beaubourg, intertextualidades, Érico Verissimo (onde tudo começou), recordações dos anos 1970, Barthes, tradições orais, farmácias, Joyce, a Bíblia, o texto do catálogo de uma exposição, psicanálise e darwinismo, o Liceu Pedro Nunes, os Abba & Wagner, Newton, trocadilhos, aforismos, dois ou três poemas, mas também citações de Camilo, Lispector, Campos, Dickinson, Craveirinha, Cernuda, D. Francisco Manuel de Melo e muitos outros. Servindo-se de uma ironia corrosiva, Adília elevou o Kitsch ao cânone: «Eu nunca saí da casa da infância. Ainda tenho os tesouros quase todos.» Num tom aparentemente desfocado, Bandolim diz mais que muitos cartapácios autobiográficos. Quatro estrelas. Publicou a Assírio & Alvim.