Hoje na Sábado escrevo sobre O Homem Fatal, de Nelson Rodrigues (1912-1980). Nunca será de mais enfatizar a importância da sua obra de dramaturgo, cronista, romancista, contista e, antes de tudo, repórter. O facto de ter apoiado a ditadura militar instaurada em 1964 gerou rasura e equívocos. Contudo, seu filho Nelsinho, o famoso ‘Prancha’ da luta armada, teve o retrato afixado nos aeroportos, sendo preso e torturado em 1972. Praticamente inédito em Portugal, Nelson era quase só identificado como tradutor dos romances de Harold Robbins. Estamos a falar do homem que em 1943, com Vestido de Noiva, fez o teatro brasileiro entrar na modernidade. Convém lembrar que o reaccionarismo de um autor não pode servir de bitola para o excluir. Mesmo porque: «D. Hélder está furioso com a questão racial dos Estados Unidos. […] E os nossos negros?» Ignorar a obra de Nelson significa pôr de lado parte importante da literatura de língua portuguesa. Para contrariar o preconceito, a Tinta da China começou a editar vários dos seus livros. Os primeiros estão aí: além de O Homem Fatal, oitenta crónicas escolhidas por Pedro Mexia, saiu A Vida Como Ela É…, sessenta contos escolhidos por Abel Barros Baptista. Chegará, espero, o tempo das peças de teatro (as tragédias cariocas e outras) e das confissões (O Óbvio Ululante, A Cabra Vadia, etc.). É um bom começo, na medida em que é impossível compreender o Brasil sem ler Nelson. As crónicas condensam as grandes obsessões do autor (morte, sexo, hipocrisia), de ordinário ilustradas por um imaginário kitsch. Nelson expõe a céu aberto, não raro em recorte escabroso, e sempre com humor, os interditos e as contradições dos vários estratos da sociedade carioca. É nas crónicas que encontramos alguns dos aforismos que a lenda fixou: «O sujeito pode ser um pulha e como tal beber cerveja. Não há incompatibilidade entre o pulha e a cerveja.» No prefácio, Pedro Mexia sublinha ter privilegiado os textos que «ofendem o senso-comum ideológico», em detrimento dos autobiográficos, os de índole cultural e os dedicados ao futebol. Para estes últimos, de tal modo relevantes no conjunto da obra, é de presumir volume autónomo. Seja como for, a presente selecção é exemplar. Cinco estrelas. Publicou a Tinta da China.
Escrevo ainda sobre As Fabulosas Histórias da Tapada de Mafra, um livro singular de Cristina Carvalho (n. 1949). Criada em 1747 por D. João V, a Real Tapada de Mafra, contígua ao palácio, serviu de parque de caça dos monarcas portugueses até à implantação da República. Sobre este espaço mítico, e sem omitir dados concretos, a autora fez mais do que um roteiro. Os monólogos do bufo-real e do lobo, tal como as narrativas encantatórias (sirvam de exemplo Piqueniques e formigas ou Um passeio noturno pela Tapada), sínteses de memórias remotas com o imaginário local, mas também os poemas, transformam o livro numa obra de classificação ambígua. Verdade que Cristina Carvalho sinaliza a origem da Tapada, a promessa do rei, os hábitos da Corte, o enquadramento geográfico, os materiais utilizados na construção do palácio-convento, a retrete de D. Carlos, as datas relevantes, etc., mas o livro tem outra ambição. Como de regra na obra da autora, a linguagem não abdica do timbre onírico. Em suma, um livro de leitura indispensável para quem queira conhecer e perceber a importância da Tapada de Mafra. Fotografias de Nanã Sousa Dias e desenhos de Teodora Boneva enriquecem o volume. Quatro estrelas. Publicou a Sextante.