quinta-feira, 29 de setembro de 2016

MÁRIO DE CARVALHO & CAMILO



Hoje na Sábado escrevo sobre Ronda das Mil Belas em Frol, de Mário de Carvalho (n. 1944), título que a alguns parecerá obscuro, mas pode ler-se como “belas em flor”, ou, atento o teor das narrativas, ilustrando a efemeridade dos encontros à superfície dos dias, senão mesmo das ondas… Num tempo em que o vocabulário comum se vê reduzido a cem palavras, e este patamar já corresponde a gente com responsabilidades na área da comunicação e da Cultura, ler Mário de Carvalho reconcilia-nos com a língua. Volta a ser assim com este novo livro, uma colectânea de dezassete contos eróticos isentos de muleta metafórica, embora o universo fescenino não pise nunca o risco do soi-disant mau gosto, facto que tranquilizará os leitores mais sensíveis ao jargão rude. Não fica nada por dizer, mas o autor tem recursos de sobra para dispensar o vernáculo atinente. Exemplo: «Não é que eu desgoste da outra coisa, mas só me desencadeio com os dedos. Antes assim que Fulana […] que só goza por trás. Mesmo por trás, percebe?» Na realidade, Ronda das Mil Belas em Frol é um exercício bem esgalhado sobre o género feminino. Do epílogo: «Não poucas mulheres são intensas, efusivas, entusiásticas e, não seria exagero dizer, desvairadas, no momento da verdade.» O epílogo vale como conto. Retratos de mulheres: Gherda, Madalena, Antonieta, Cremilde, Mónica, Olga, Marta, Patrícia, Magda, Flora, Dionilde, Zulmira, Bruna, Aurora, Adozinda, Yolanda, Sílvia. E mais duas sem nome: uma executiva e a dona de uma tabacaria de shopping. Sandra e Rebeca não contam. Algumas são casadas. Apenas Mónica é citada com nome de família. Perfis breves, porém nítidos. Licenciosidade («Detesto coisas moles na minha mão»), ironia, cinismo, crítica social. Importa menos o recorte gráfico da coreografia libidinal («Vá, crava! — E, desfalecendo: — Crava!») do que o olhar arguto das circunstâncias, digamos, “transgressoras”, das classes médias urbanas. Dito de outro modo, a função dos sketches não se esgota na crónica dos engates do narrador. Estes contos fixam um tempo preciso, que talvez coincida com os anos 1970 e 80 do século passado, mas isto é presunção de leitor atento à linguagem e ao modus operandi das personagens, sem resquício de juízo valorativo. O feminismo ortodoxo vai torcer o nariz. Quatro estrelas. Publicou a Porto Editora.

Escrevo ainda sobre Todos os Contos, Novelas curtas e Romances breves de Camilo Castelo Branco (1825-1890), primeiro dos quatro volumes com que o Círculo de Leitores dará a conhecer a parte menos conhecida da Obra do autor de Amor de Perdição, ou seja, os contos, novelas curtas e romances breves, mas também, em próximos tomos, os textos polémicos e parte da correspondência do autor. Este primeiro volume inclui a famosa novela Maria! Não Me Mates Que Sou Tua Mãe!, bem como o romance inacabado A Infanta Capelista (1872), de certo modo inédito, pois teve difusão “clandestina”. Trata-se de um roman à clef sobre os Braganças e a família imperial brasileira. A sua escrita foi interrompida depois da visita que o imperador D. Pedro II fez ao escritor. Em carta a um amigo, Camilo não tergiversa: «A consciência entrou-me na algibeira.» O volume inclui cronologia biográfica, iconografia relacionada com a vida e obra do autor e notas. Parece-me pouco feliz a opção de paginar a duas colunas os textos de Camilo, suponho que com a intenção de os distinguir da vasta e criteriosa hermenêutica de José Viale Moutinho, responsável pela edição, autor dos preâmbulos e restante aparato crítico. Indispensável para melhor compreender Camilo. Cinco estrelas. Publicou o Círculo de Leitores.