segunda-feira, 25 de abril de 2016

O QUE TERIA SIDO?

Quem não viveu os anos do salazarismo não pode avaliar em toda a sua extensão o que era o Portugal mesquinho do Estado Novo. Não chega ter ouvido contar. Não chega ter lido o muito que entretanto se escreveu sobre essas décadas abomináveis. Realmente não chega. É preciso ter passado pela experiência da censura, da polícia política e da guerra. Foi terrível. Nasci em Lourenço Marques, onde vivi até aos 26 anos. Nunca pertenci a movimentos clandestinos, nunca militei em qualquer espécie de organização política. Nem sequer em democracia. A minha aversão ao Regime vinha por tradição familiar. Comprava livros proibidos, dizia mal do Botas, e era tudo. Melhor dito: pensava eu que era tudo. De facto, não era.

Em Abril de 1969, tinha então 19 anos, fui a Durban com duas amigas, uma delas filha de um conhecido e respeitado oposicionista entretanto falecido. A viagem foi monitorizada pela PIDE em sintonia com a BOSS sul-africana. Soube-o no regresso, quando minha Mãe, que durante a minha ausência fora chamada ao gabinete do director da PIDE, me perguntou o que tinha andado a fazer. A viagem mete pelo meio o escritor Alan Paton (activista dos direitos cívicos e fundador do Partido Liberal, que se opunha à política do desenvolvimento separado), mas isso agora não vem ao caso. Em Outubro desse ano, no dia das primeiras eleições do consulado de Caetano, uma festa heterodoxa — um ‘casamento’ fictício —, organizada por mim e pelas amigas da viagem a Durban, foi por momentos interrompida por dois agentes da polícia política que não perceberam porque carga de água 50 rapazes e 50 raparigas vestiam calças de sarja branca. A inspecção terá durado um quarto de hora. Até que, em Janeiro de 1971, foi aberto o ominoso processo 1/808/71, o qual conduziu à prisão dezenas de militares de todas as patentes, por práticas homossexuais. Sem acusação formada, eu próprio estive preso em Nampula durante 57 dias. (O processo foi arquivado em Dezembro de 1973.) Adiante. Em 2014 pude consultar, no Centro de Documentação 25 de Abril, da Universidade de Coimbra, o escabroso relatório da PIDE a meu respeito, documento ilustrado com uma dúzia de fotografias minhas, três das quais nunca tinha visto.

A partir daqui, está tudo dito. O que teria sido de nós sem o 25 de Abril?