Hoje na Sábado escrevo sobre A Casa em Paris, de Elizabeth Bowen (1899-1973), autora de uma obra extensa, que inclui ficção e ensaio, mas não cativou os editores nacionais. A Casa em Paris, agora traduzido, resgata a obra de um silêncio apenas interrompido pelas reedições de A Morte do Coração. É provável que o conservadorismo político tenha pesado no desinteresse. O romance começa e termina no dia da chegada de Henrietta a Paris, durante a Primeira Grande Guerra. Henrietta tem onze anos, nunca antes havia saído de Inglaterra, e está em trânsito para casa da avó, no Sul da França. Apesar do cansaço da viagem, a noite inteira metida num comboio, tem a noção de como a sua vida vai mudar. A história está dividida em três partes, correspondendo a do meio a um flashback de dez anos que serve de guia para factos que dizem respeito às origens de Leopold, o amiguinho mais novo que espera conhecer a mãe que nunca viu. Por mero acaso, Henrietta e Leopold partilham o dia em casa da senhora Fisher. A fórmula fora já utilizada em Friends and Relations, um romance anterior de Bowen. É muito interessante verificar como esse capítulo de intervalo, espécie de monólogo interior, em grande medida construído pela imaginação, serve de cimento à estrutura romanesca. Não por acaso, a última frase da primeira parte — «A tua mãe não vem; não pode vir» — é a mesma que abre a terceira. Sem necessidade de recurso a tiradas enfáticas, Bowen é letal na dissecação da sociedade britânica da primeira metade do século XX. Esta mulher discreta, que privou com os bloomsberries e teve amantes de ambos os sexos, escreveu um romance admirável sobre identidade, solidão e maturidade precoce. Até que ponto o destino de Karen (e, por consequência, o de Leopold) foi o corolário dos “princípios” da senhora Fisher? Que o jogo de espelhos seja intuído por duas crianças, ao mesmo tempo que desfaz os mitos associados à inocência, ilustra bem o ponto de vista de Bowen face a juízos morais retrógrados. Por último mas não em último, sublinhar a elegância com que Bowen manipula os demónios de cada um. Cinco estrelas.
Escrevo ainda sobre A Última Noite e Outras Histórias, de James Salter (1925-2015). Traduzido pela primeira vez no ano passado, quem leu Tudo o que Conta verificou que a fasquia é muito alta. Os contos de A Última Noite e Outras Histórias aí estão para o corroborar. Richard Ford faz a síntese perfeita: «Frase a frase, Salter é o mestre.» Não há outra forma de colocar a questão. Salter, que durante doze anos foi piloto de guerra, e depois guionista de cinema até dedicar-se a tempo inteiro à literatura, deixou uma Obra admirável que inclui ficção, poesia, ensaio e memórias. Coligindo contos de duas colectâneas, A Última Noite e Outras Histórias ilustra o seu virtuosismo. Como retratada pelo autor, a realidade surpreende-nos com os saltos no tempo do plot, mesmo quando parecem (e algumas vezes são) descrições elípticas de episódios triviais: «O ar era puro e fresco. Fazia parte daquela grande e inalterada ordem de pessoas que vivem do seu salário, em cujo mundo não há luz, e que não têm noção do que se passa acima deles.» Notável. Cinco estrelas. Publicou a Livros do Brasil.