quinta-feira, 26 de novembro de 2020

SEIS LIVROS


Hoje na Sábado.

Terminou a especulação em torno da identidade de Elena Ferrante, pseudónimo da tradutora Anita Raja (n. 1943), mas não o ritmo de publicação. Agora traduzido, A Vida Mentirosa dos Adultos mantém a exuberância descritiva da sua ficção. Quem leu a tetralogia A Amiga Genial sabe do que falo. Denominador comum à obra precedente: Nápoles, conflito de classes, a experiência das mulheres, a perversidade das relações familiares. Giovanna mente aos pais, coisa que ambos fazem com ela. Um romance sobre o poder e as consequências da mentira? De certo modo, sim. Aos doze anos, ouvindo o pai dizer à mãe que a filha «está a ficar com a cara de Vittoria» (a tia malvada), descobre-se feia. A partir daí, todo o plot gira em torno da aversão que julga causar. O aspecto mais interessante é o confronto entre a rudeza dos bairros populares e a “respeitabilidade” da cidade burguesa. Não é um livro amável, mas o contrário é que seria de admirar. Editou a Relógio d'Água.

Uma nova tradução do polaco Zbigniew Herbert (1924-1998) traz de volta um autor central à cultura europeia. Natureza Morta Com Brida colige seis ensaios e dez textos apócrifos sobre a cultura dos Países Baixos. Com enfoque nos costumes da Holanda dos séculos XVI e XVII, o ensaio que dá o título ao conjunto disseca a biografia e a obra homónima de Johannes van der Beeck, o pintor que passou à história da arte como Torrentius. O artista foi condenado à fogueira por pertencer à Rosa-Cruz, uma sociedade secreta, mas a repercussão internacional do veredicto valeu-lhe o exílio na corte inglesa. Deveras estimulante. Editou a Cavalo de Ferro.

Traduzidos directamente do russo por Nina e Filipe Guerra, chegaram a Portugal os contos que Ivan Búnin (1870-1953) escreveu durante o exílio no sul de França e reuniu em Alamedas Escuras. Famoso pelo seu diário Os Dias Malditos (1926), Búnin ganhou o Nobel da Literatura em 1933, antes de qualquer outro russo e numa altura em que, ao contrário do que hoje sucede, estava longe de ser um autor célebre, respeitado, traduzido e estudado. O amor e a natureza dominam a obra, embora a condição de émigré, bem como as mudanças ocorridas na Rússia pré e pós-1917, estejam sempre presentes. Esta edição inclui prefácio de Tatiana Mártchenko. Editou a Dom Quixote.

Quem acompanha a literatura espanhola reconhece a importância de Javier Cercas (n. 1962) e sabe que um dos seus traços distintivos radica no hábito de inserir factos reais na trama ficcional. Terra Alta não constitui excepção. Com acção centrada na comarca de Terra Alta, o protagonista, Melchor Marín, mosso d’Esquada com passado problemático, tem um crime nas mãos. O thriller não ignora os atentados islâmicos de Barcelona, o referendo catalão de 2017 e a Guerra Civil. Longe do seu melhor, Terra Alta ganhou o Prémio Planeta 2019. Editou a Porto Editora.

Mais de 30 anos passados sobre a fatwa que o aiatola Khomeini decretou contra si, Salman Rushdie (n. 1947) continua a ser uma das grandes vozes da literatura de língua inglesa. Cervantes deu o tiro de partida, mas Quichotte, a obra mais recente de Rushdie, faz vénia ao surrealismo, sem esquecer Voltaire e Ionesco. O «viajante de origem indiana...» que atravessa a América, radiografa o caos actual. Com reality shows no centro da intriga, Quichotte tem outro livro dentro, modo de ilustrar, em dois andamentos, o desconcerto do mundo. Uma coisa sabemos: Rushdie himself não é outro senão Miss Salma R., «estrela de uma dinastia de estrelas». Digamos que a obra do autor já conheceu melhores dias. Editou a Dom Quixote.

Organizado por António M. Feijó, João R. Figueiredo e Miguel Tamen, saiu O Cânone. A partir de autores nascidos entre 1391 (o rei Dom Duarte) e 1939 (Luiza Neto Jorge), os três editores, o historiador Rui Ramos e 22 ensaístas, escrevem sobre 47 autores, mais as Três Marias, poetas laureados, revistas e críticos. Entre outros textos, António M. Feijó assina a introdução, Miguel Tamen escreve sobre a lógica interna do livro, Anna M. Klobucka sobre mulheres na literatura, João R. Figueiredo sobre escritores homossexuais, etc. Como vem escrito, trata-se de «um livro de crítica literária para nos fazer pensar sobre a literatura portuguesa.» Meia dúzia de omissões geraram controvérsia, assente, como de regra, em clubismo. Tudo visto, o saldo é deveres positivo. Editaram, em co-edição, a Fundação Cupertino de Miranda e a Tinta da China.

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