Hoje na Sábado.
Madrid me mata
Descobri Madrid há quarenta anos, induzido pela movida de Tierno Galván, o alcaide que fez da capital de Espanha a cidade mais frenética da Europa. Toda a gente ia a Londres fazer compras, ver teatro e museus, mas quem queria “desbocar-se” tinha de ir a Madrid, que naquela época foi uma espécie de Nova Iorque a preço de peseta.
Tenho voltado repetidas vezes. Como no resto do mundo, muita coisa mudou, mas a joie de vivre dos madrilenos continua imbatível, os cafés icónicos ainda lá estão, a oferta gastronómica alinhou pelos padrões europeus mais exigentes, o Prado continua a ser um museu excelentíssimo e, mesmo ao lado, só o mítico Ritz se mantém encerrado há dois anos, alvo de obras de renovação decididas pelo grupo Mandarin Oriental. Por cento e vinte milhões de euros, os novos proprietários garantem devolver à cidade, talvez ainda este ano, o hotel que o rei Alfonso XIII mandou construir pouco depois de casar-se com Victoria de Battenberg.
O Ritz fica no topo do Triângulo de Arte, constituído pelos museus do Prado, o Thyssen-Bornemisza e o Reina Sofía. Com mais de duzentos anos, o Prado é o equivalente espanhol do Louvre. Sem surpresa, Goya e Velázquez estão extensamente representados. A sala de Las meninas (Velázquez) está em permanente engarrafamento. O acervo de pintura europeia inclui Rafael, Bosch, Caravaggio, Rubens, Botticelli, Ticiano, Brueghel, Fra Angelico, Tiepolo, Van Dyck e outros, como o notável Lawrence Alma-Tadema, de quem nunca tinha ouvido falar antes de o descobrir ali. O que saiu do Prado foi Guernica, obra que Picasso pintou em 1937, após o bombardeio da cidade basca. Exposto na Exposição Universal de Paris, enquanto prosseguia a Guerra Civil espanhola, o vasto mural só entrou em Espanha em 1981, ficando exposto no Casón del Buen Retiro, o anexo do Prado onde pela primeira vez o vi. Em 1992 foi transferido para o Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía, inaugurado nesse ano. Ao contrário do Prado, mandado construir para albergar as colecções reais, o Reina Sofía ocupa as instalações de um antigo hospital, aumentado em 2005 pelo edifício Nouvel. Focado em arte moderna, permite um amplo tour d’horizon do século XX aos nossos dias. Picasso, Dalí, Calder, Lichtenstein, Picabia, Warhol, Baselitz, Tàpies, Poliakoff, Saura, Rothko, Klee, Miró, Pollock, Barceló e muitos outros, incluindo fotógrafos como Cindy Sherman e Man Ray, fazem do Reina Sofía uma das moradas mais procuradas da cidade.
A meio caminho entre o Prado e o Reina Sofía fica o Thyssen-Bornemisza, com origem na colecção privada da família de industriais alemães Thyssen. As vicissitudes da Segunda Guerra Mundial fizeram com que as obras circulassem entre a Alemanha, a Hungria, a Holanda e a Suíça (em 1988 ainda estavam em Lugano). Foi Carmen Cervera, então casada com o barão Hans Heinrich von Thyssen-Bornemisza, quem convenceu Felipe González, presidente do Governo, a negociar a vinda definitiva das obras para Espanha. Assim, em 1992, o Palácio de Villahermosa tornou-se um museu de referência, visitado em 2019 por mais de um milhão de pessoas, atraídas pelo carácter heterogéneo da colecção. Há de tudo, do Renascimento a Balthus, passando por Willem de Kooning, Natalia Goncharova, Arshile Gorky, Frank Stella, Georgia O'Keeffe, Egon Schiele, etc., sem esquecer os flamengos, os impressionistas e os cubistas. Tal como o Prado e o Reina Sofía, mantém ao longo do ano excelentes exposições temporárias.
Mais recente, ocupando as instalações de uma antiga central eléctrica reconvertida em centro cultural, o CaixaForum Madrid destaca-se pelo jardim vertical de Patrick Blanc. Inaugurado em 2008, exibe exposições temporárias ao longo do ano, muitas delas em parceria com o British Museum, de Londres.
Denominador comum às quatro moradas, o Paseo del Prado, imponente avenida que, ultrapassada a Praça de Cibeles, entronca com o Paseo de Recoletos e o Paseo de la Castellana. Em 2002, o arquitecto português Álvaro Siza Vieira ganhou o concurso internacional para a sua “requalificação”, mas o violento clamor público (um movimento cívico liderado por Carmen Cervera) gerado pelo previsto abate de árvores, congelou o projecto sine die. Ainda bem.
Na Praça de Cibeles o que mais impressiona não é a espectacular fonte dedicada à deusa grega da fertilidade. É o palácio que ocupa o lado sudeste. O edifício, um dos mais monumentais da cidade, destaca-se por ter sido construído em pedra branca. Foi sede dos Correios durante 90 anos, albergando actualmente os serviços culturais do município. Dispõe de uma área de exposições temporárias denominada CentroCentro. A dois passos, encontramos a Praça da Independência, dominada pela Puerta de Alcalá, monumento neoclássico que Sabatini desenhou em 1768 por encomenda de Carlos III. Após uma pausa no Cappuccino Grand Café, a Puerta de Alcalá é o ponto de partida ideal para descobrir o privilegiado bairro de Salamanca, epicentro do comércio de luxo, concentrado nas calles Serrano, Claudio Coello, Ayala, Ortega y Gasset, Hemorsilla, Lagasca, Ramón de la Cruz e Goya, esta última com ofertas mais “populares”. A larga maioria dos melhores hotéis, bem como alguns dos restaurantes mais exclusivos, também se encontram no bairro de Salamanca. O mesmo se diga do Museu Arqueológico, na elegante Calle Serrano.
A título de exemplo refira-se a Calle de Jorge Juan, com mais de duas dúzias de restaurantes. Pela qualidade da cozinha e do serviço, mas também pela atmosfera glossy, destaco cinco: o Quintin, o Paraguas, La Máquina, o Graciano e La Bien Aparecida. Não estamos a falar de restaurantes que têm ou tiveram estrelas Michelin. Esses encontram-se espalhados um pouco por toda a cidade, como o magnífico Club Allard, em tempos um clube privado da monarquia e da alta-finança, o glamoroso Coque ou o incontornável Cebo, do chef Aurelio Morales. Localizado no rés-do-chão do Hotel Urban, decorado por Philippe Starck, o Cebo fica muito próximo das Cortes. No outro extremo do paladar, os amantes de tapas podem optar pela tradição ou pela “desconstrução”… No primeiro caso, a Casa Del Abuelo (Calle Goya) é perfeita. No segundo, convém conhecer o Juana La Loca, na Plaza de Puerta de Moros.
Na bifurcação da Calle Alcalá com a Gran Vía, ou seja, na zona de fronteira entre a Madrid Bourbon e o centro histórico, o Círculo de Bellas Artes é ponto de passagem “obrigatório”, quanto mais não seja por ter a melhor esplanada da cidade. Fundado em 1880, o Círculo está equipado com quatro salas para exposições, auditório para concertos e teatro, sala de cinema, centro de documentação e uma das melhores (senão a melhor) livrarias da cidade. No piso térreo encontra-se o café-restaurante La Pecera, todo art déco, onde é possível almoçar a preço módico. Nos anos 1990, ainda o espaço hoje ocupado pelo restaurante era uma varanda larga à altura da copa das árvores. Convém não confundir o Círculo com a Real Academia de Bellas Artes, que também fica na Calle Alcalá, e tem um espólio riquíssimo de pintura espanhola, de perfil paralelo ao do Prado.
Tão importante como visitar os museus é conhecer o Café Gijón, no Paseo de Recoletos. Aberto desde 1888, por lá passou toda a gente que conta, na literatura, na política e nas artes em geral. As suas tertúlias fazem parte da história da cidade (no Museu de Cera existe réplica de uma delas). No Gijón encontramos velhos intelectuais antifranquistas, poetas, turistas cultos, monárquicos, yuppies da era digital, galeristas, etc. Não tem filas à porta, como os cafés de Viena, mas, sem reserva, é impossível arranjar mesa no interior. Na esplanada sim, mas é outro campeonato.
O prolongamento de Recoletos é o Paseo de la Castellana, com início na Praça Colón. Ao longo de seis quilómetros, a avenida vai mudando de perfil. Na primeira secção fica o muito recomendável Museu de Ciências Naturais. Na segunda, denominada Nuevos Ministerios, vários departamentos do Governo. E, na terceira, o CTBA, ou seja, o Cuatro Torres Business Area (os quatro arranha-céus que vemos do ar, muito antes do avião aterrar). Portanto, como o nome indica, uma área de negócios.
Há trinta anos, ainda a Gran Vía era o coração de Madrid: comércio de todo o tipo, teatros, cinemas, cafés, bares, restaurantes, casas de diversão nocturna, hotéis, galerias, edifícios magníficos. Não havia como ignorar o eixo que liga o bairro de Salamanca com o de Argüelles. Nada disso desapareceu (nem os grandes cinemas), as obras modernistas continuam a ser um íman fortíssimo para quem gosta de arquitectura, mas o downsizing é evidente, em especial no comércio e na hotelaria. Sirva de exemplo o Bar Chicote, que nos anos 1970 ainda era considerado um dos dez melhores do mundo, ponto de encontro de celebridades planetárias, e é hoje um antro incaracterístico para os turistas low cost que tornam a circulação da Gran Vía um inferno. Contudo, a comunidade LGBT ainda a utiliza como ponto de passagem para Chueca, o gueto gay do bairro Justicia que tem inspirado livros, filmes e muita lenda urbana.
Outro grande atractivo é a Plaza Mayor, sobrevivente de três incêndios desde o século XVI. Mantém as nove entradas em arco, sendo a Casa de la Panadería o ponto de maior interesse. O “progresso” transformou a praça num conglomerado de restaurantes, esplanadas e lojas sem interesse. A duzentos metros fica outra praça famosa, a Puerta del Sol, centro de manifestações políticas e de festejos do réveillon. Quem quiser ver a estátua do Urso e do Medronheiro, símbolos de Madrid, tem de lá ir. Na Carretera San Jerónimo, que parte da Puerta del Sol, fica o Lhardy, loja gourmet com restaurante no primeiro andar. O estabelecimento tem quase duzentos anos, e ainda me lembro do tempo em que, ao domingo, antes do almoço, toda a gente lá ia comer (aliás beber, pois era servido em almoçadeiras) consommé. Hoje, os turistas fazem filas homéricas à porta da loja.
No centro histórico merecem visita o Mosteiro das Descalças Reais (com obras esplêndidas de Zurbarán, Murillo e Ribera), o Museu Cerralbo, que acolhe a colecção particular do marquês do mesmo nome (notável sobretudo pelas peças de arqueologia), bem como o Teatro Real, ou seja, a Ópera. E na Calle de los Cuchilleros, o Botín, que hoje se chama Sobrino de Botín. Estamos a falar do restaurante mais antigo do mundo, aberto desde 1725. Em quatro pisos, um labirinto de salas, algumas com uma única mesa, serve comida tradicional, valendo sobretudo pela experiência.
Como escrevi um dia, é mais fácil viver nestas cidades que conservam os seus cafés, a sua vegetação e a sua loucura.
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