terça-feira, 31 de janeiro de 2017

LINGUAGEM


A propósito da polémica que envolve o Plano Nacional de Leitura e meia dúzia de papás agastados com a linguagem crua de um romance, vou contar uma história.

Em Fevereiro do ano passado, uma amiga, que por acaso é escritora, pediu-me autorização para ceder um excerto do meu romance Cidade Proibida, de 2007, a uma revista literária que ia aparecer. A minha amiga não fazia parte da direcção da revista, desaparecida ao 2.º ou 3.º número, mas serviu de intermediária entre as partes. Porquê este excerto e não outro? Porque a revista tencionava publicar um dossier sobre erotismo na poesia portuguesa contemporânea. Disse que sim, mas acrescentei: O texto nunca será publicado. Com efeito, nenhum dos números publicados incluiu o famoso dossier. Verdade que a revista acabou, mas... Se comparado com outras passagens, o excerto seleccionado é soft. Transcrevo-o com cortes para sublinhar os trechos com linguagem crua.

«[...] Assim que decidiram viver juntos, Martim e Rupert procuraram casa [...] Rupert continuava a achar absurdo o preço das casas portuguesas, e não queria comprar, mas um dia Martim apareceu-lhe nas aulas com as chaves. [...] Anda, vem ver. Depois almoçamos no Pabe. / Com o skyline das colinas a toda a largura das janelas e o rio ao fundo, a vista do 4.º andar era magnífica. A casa estava vazia, só se mudaram ao fim de dez dias, mas Rupert ficou logo impressionado com a luminosidade, o soalho, o recorte dos estuques, o fogão de sala com sólidas guardas de bronze, o granito rosa das casas de banho e a tralha hi-tech da cozinha. Foi justamente na cozinha que Martim o comeu. A mesa era larga, tinha boa altura e um tampo surpreendentemente macio. Não se lembra qual dos dois chupou primeiro o outro. Lembra-se da luz crua do sol, de ter arrancado as calças e os briefs de Rupert, obrigando-o a dobrar-se no tampo de pedra negra, ao mesmo tempo que com a mão aberta lhe apertava a garganta à medida que o penetrava. Nunca tinham fodido de pé. O orgasmo foi praticamente simultâneo, sem que Rupert tivesse necessidade de se tocar. Nessas ocasiões, Martim afrouxava a pressão dos dedos para melhor sentir estremecer o corpo do companheiro. [...]»

A título de curiosidade, refira-se que a cena se passa no 11 de Setembro, mas, como tudo acontece em Lisboa antes das duas da tarde, eles ainda não sabem.

A imagem corresponde à capa da terceira edição comercial (2013) do livro. Clique.