Filho de um filósofo exilado por causa de Franco, eterno candidato ao Nobel, admirado sem reservas pelos mais ilustres dos seus pares europeus e norte-americanos, romancista, contista, ensaísta, tradutor de Sterne, Conrad, Yeats, Auden, Nabokov, Ashbery e outros, antigo professor de literatura em Oxford, nada na sua obra (várias vezes premiada dentro e fora de Espanha) se confunde com a imagem de marca da literatura espanhola contemporânea. Digamos com clareza: Javier Marías é o mais importante escritor espanhol dos últimos cinquenta anos.
Sob a aparência de um thriller, Tomás Nevinson põe em pauta o dilema moral de matar ou não matar, o “dever” de optar por uma dessas soluções. Veja-se o episódio que une o escritor alemão Friedrich Reck-Malleczewen ao destino de Hitler: podia tê-lo morto em 1936, mudando o curso da História, mas não o fez, acabando morto em Dachau.
Com os massacres da ETA em pano de fundo, detalhando alguns dos mais brutais, o plot é narrado na primeira pessoa, excepto quando Nevinson veste a pele de Miguel Centurión Aguilera, o pacato professor de inglês pelo qual se faz passar em Ruán, a cidade fictícia onde tem por missão descobrir, entre três mulheres — Inés Marzán, Celia Bayo e María Viana —, qual delas é de facto Magdalena Orúe O’Dea, «metade da Irlanda do Norte e metade da Rioja…», o cérebro por trás do crime hediondo. Por se tratar de um exercício sobre o bem e o mal, a culpa, o medo e a memória, e não de mero panfleto sobre espiões e terrorismo político, Shakespeare é citado com propriedade. Mas, como sempre, a vasta erudição da prosa não perturba a fluidez do discurso.
Calibrando cada frase com a precisão de um joalheiro, ao mesmo tempo que mantém a tensão narrativa num jogo de harmónicas não isento de mordacidade e humor, Javier Marías não esquece as vítimas do separatismo basco, o ónus do horror. Tomás Nevinson, o romance, é apenas o invólucro elegante da interpelação que deixa à posteridade.
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