segunda-feira, 7 de setembro de 2020

7 DE SETEMBRO DE 1974


Passam hoje 46 anos sobre uma das datas mais trágicas vividas em Lourenço Marques, actual Maputo. Ainda lá vivia e tenho presentes esses dias de caos universal. Respigo do meu livro de memórias Um Rapaz a Arder, publicado em 2013 na Quetzal:

«[...] Do ponto de vista das expectativas individuais, o 25 de Abril dividiu a população branca em dois grandes grupos: os que queriam a independência branca, como na Rodésia de Ian Smith; e os que queriam a independência sob tutela da Frelimo. Entalado entre os dois, sem expressão numérica relevante, o núcleo dos que acreditavam numa solução de compromisso, com exclusão das teses federalistas. Era o meu caso. A ilusão durou pouco.

A tentativa de secessão branca de 7 de Setembro de 1974 foi um episódio tenebroso com ramificações nunca devidamente esclarecidas. Nesse sábado, foi assinado em Lusaca o acordo que definia os termos e condições da independência de Moçambique, tendo Mário Soares e Samora Machel como principais signatários. Assim que o facto foi divulgado, um grupo de antigos colonos reunidos no denominado Movimento de Moçambique Livre ocupou as instalações do Rádio Clube e fechou o aeroporto da cidade. Eram seis da tarde. Fiz alguns telefonemas e percebi que a situação era muito grave. Horas antes, um grupo de insurrectos tinha invadido a penitenciária e libertado os pides.

A situação ficou fora de controlo. Jornais pró-independência, como o Notícias e A Tribuna, foram tomados de assalto, o mesmo acontecendo às instalações da Associação Académica. O Diário foi o único jornal que saiu no domingo. Entre alusões patrióticas e recados aos vendilhões de feira (o alvo era Soares), apoiava a secessão. Os Democratas de Moçambique, cujo bureau fora destruído, deixaram as suas casas no Sommerschield e na Polana e foram refugiar-se no Caniço. Rui Knopfli foi para casa de José Craveirinha. Os transportes públicos deixaram de circular, grande parte dos restaurantes encerrou e, durante quatro dias, os cinemas não funcionaram.

O Movimento de Moçambique Livre confiava no apoio do Presidente da República, mas Spínola não abriu a boca. E contava também com Jorge Jardim, mas o ideólogo do federalismo desapareceu de cena. Apesar do apoio da BOSS, a polícia política sul-africana, o golpe não teve repercussão noutras cidades de Moçambique, nem sequer na Beira, feudo de Jorge Jardim. Mesmo assim, o MML galvanizou os sectores mais reaccionários de Lourenço Marques.

A cidade mergulhou num caos sem precedentes. Enquanto a tranquibérnia durou, não me atrevi a ir mais longe que o Parque José Cabral, a cem metros de minha casa. O Jorge estava retido em Boane, na escola de oficiais milicianos. Os rostos visíveis do MML eram Manuel Gomes dos Santos, o locutor Manuel; Victor Hugo Vellez Grilo, dirigente do PCP até às purgas de 1940 (vivia em Lourenço Marques desde 1942); Gonçalo Mesquitela, líder da direita, vogal do Conselho Ultramarino e deputado à Assembleia Nacional; Arlindo Malosso, Vasco Cardiga, Vasco Ferreira Pinto, Pires Moreira e o comandante de milícias Daniel Roxo.

Uma companhia de comandos oriunda do Niassa reabriu o aeroporto e desocupou o Rádio Clube na tarde do dia 10. Soube-se que a opera buffa tinha acabado quando as arengas de Gomes dos Santos e Vellez Grilo foram substituídas pelo grito «Galo, galo, galo. Amanheceu. Galo, amanheceu». Para uns, a senha da Frelimo visava apaziguar o Caniço. Para outros, foi o tiro de partida da desforra que se manifestou de forma assaz violenta nas vilas da Machava e da Matola. Parte significativa da população branca via esboroar-se o sonho de uma secessão de perfil rodesiano. O êxodo foi imediato. Entre os dias 10 e 12, as autoridades da África do Sul e da Suazilândia facilitaram a passagem de mais de cinquenta mil brancos, a maioria sem passaporte. Muitos regressaram ao fim de semanas. [...]»

Eduardo Pitta, Um Rapaz a Arder, Lisboa: Quetzal, 2013.