Hoje na Sábado escrevo sobre O Custo de Vida, a segunda parte da autobiografia de Deborah Levy (n. 1959), escritora britânica nascida na África do Sul, país que abandonou aos 9 anos de idade, na companhia dos pais, activistas dos direitos humanos e membros do ANC empenhados na luta anti-Apartheid. Deborah vive na Inglaterra desde então. Sobre O Custo de Vida pode dizer-se que é uma autobiografia feminista, um manifesto cru da dificuldade de ser mulher num mundo dominado por homens: maior intolerância, mais competição e toda a sorte de preconceitos. Nos interstícios da prosa, ecos de Simone de Beauvoir. A primeira parte desta autobiografia está disponível no nosso país com o título Coisas Que não Quero Saber, editado também pela Relógio d'Água. Por volta dos 50 anos, Deborah divorcia-se e vai viver com as duas filhas para um bairro “proletário” do norte de Londres. O Custo de Vida é o relato, por vezes elíptico, dessa mudança: «Nesse mês de Novembro, mudei-me com as minhas filhas para um apartamento que ficava num sexto andar de um grande prédio de aspecto desmazelado [adequado] a esses tempos de desintegração e de rutura.» Sucedem-se as faltas de água e electricidade, Deborah não tem espaço para escrever, os livros continuam nas caixas, os corredores estão revestidos por plástico cinzento usado nas obras. Muito difusas, memórias da casa de família na África do Sul. A situação melhora quando a viúva de Adrian Mitchell (o poeta e dramaturgo falecido em 2008), sua vizinha, lhe aluga o anexo do fundo do jardim onde o marido escrevia: «Toda a gente merece ter um anjo da guarda como Celia.» Numa linguagem despojada, Deborah fala de Freud, de incomunicabilidade, do ofício de escrever (citando Elena Ferrante, James Baldwin, Doris Lessing, etc.), de episódios caricatos como o da galinha atropelada, de uma viagem a Paris efectuada no Eurostar, da doença e morte da mãe, do seu romance Nadar para Casa, da cultura colonial branca na África do Sul, dos atritos do ciclismo urbano, de livros e filmes de Marguerite Duras, bem como de outros temas e incidentes pessoais. Quatro estrelas. Publicou a Relógio d'Água.
Escrevo ainda sobre Istambul, Istambul, de Burhan Sönmez (n. 1965), escritor turco actualmente radicado no Reino Unido, país onde escreveu e publicou este romance. O regime turco tem afastado do país muitos intelectuais desafectos de Erdoğan. Um deles é Sönmez. O romance é anterior ao putsch militar de 2016. Porém, os seus dez capítulos antecipam as sequelas do golpe falhado. Cada capítulo corresponde a um dia. Os narradores são quatro presos políticos, enclausurados numa cela subterrânea, escura e minúscula: um médico, um estudante, um barbeiro e um velho revolucionário que «falava no tom dos poetas delirantes». Ao longo de dez dias, nos intervalos dos interrogatórios e das sessões de tortura, contando histórias uns aos outros, narram memórias da cidade. Até que, de acordo com as respectivas idiossincrasias, cada um deles passa a discutir os efeitos da repressão: «Na cela, a vida repetia-se. À medida que a escuridão girava lentamente por cima de nós, as nossas palavras descreviam a mesma pessoa…» Podia ser um thriller. Mas é o retrato de uma ditadura. Três estrelas. Publicou a Dom Quixote.