quinta-feira, 25 de julho de 2019

POLLOCK & ANA CRISTINA SILVA


Hoje na Sábado escrevo sobre Banquete no Paraíso, do americano Donald Ray Pollock (n. 1954), um autor que não tem pressa. Publicou o primeiro livro, uma colectânea de contos, aos 54 anos, e o mais recente, este Banquete..., em 2016. Antes de voltar a estudar e dedicar-se à escrita foi camionista. Para já, a bibliografia reduz-se a três títulos, mas a recepção crítica tem sido boa e revistas de prestígio pedem-lhe textos. Também foi traduzido e premiado em França. O carácter sombrio dos três livros que escreveu não constitui óbice. Antes pelo contrário. Sem surpresa, os círculos literários mais sofisticados continuam a olhar para ele como um intruso. Ele paga-lhes na mesma moeda, causticando os árbitros do gosto e caricaturando o establishment. O livro é um western. Isso vale para o imaginário, personagens, violência, lixo, sordidez, truques, vício, amoralidade, prostitutas, jogadores, banditismo e outros lugares-comuns. Estamos em 1917, algures na «fronteira que separa a Geórgia do Alabama», mas os cem anos de intervalo nada significariam se tudo decorresse na actualidade. Afinal, a história dos três irmãos Jewett podia ser hoje. O título, Banquete no Paraíso, remete para o estado de espírito dos irmãos após a morte do pai durante um acesso de diarreia. Para Cane, Cob e Chaminé, o equivalente de ‘agora tudo é possível’. Doravante seriam um bando implacável, uma lenda viva. A Primeira Guerra Mundial e, em concreto, a luta contra os alemães, funciona como metáfora da natureza humana. As actividades ilegais do Bando Jewett servem de fio condutor do plot e de pretexto para Donald Ray Pollock inserir estórias laterais (e muitas referências literárias, Shakespeare incluído) na narrativa central. Sirva de exemplo a personagem do tenente Vincent Bovard, um homossexual recalcado cuja presença parece corresponder à necessidade de introduzir um tema fracturante: «A Europa destroçada pela guerra, com os seus governantes consaguíneos e preconceitos vetustos, ia dar-lhe […] uma morte pela qual valia a pena lutar.» O autor tem uma mente fértil, mas a quota de transgressão não corresponde ao que foi escrito sobre o romance anterior, The Devil All the Time, publicado em 2011. Três estrelas. Publicou a Sextante.

Escrevo ainda sobre As Longas Noites de Caxias, o romance mais recente de Ana Cristina Silva (n. 1964). Decorridos quase 50 anos da queda da ditadura, começa a fazer-se a história da polícia política. Sirva de exemplo este livro. Se outro mérito não tivesse, faz luz sobre uma realidade pouco conhecida: o das mulheres torturadoras. O quotidiano de Caxias confronta Laura com Maria Helena, uma agente da PIDE que chegou a chefe de brigada. O mais interessante não radica no sadismo, traço de carácter sem género. O que dá singularidade à narrativa é o modo como Maria Helena “sobrevive” ao 25 de Abril: prisão, fuga para Madrid (onde Barbieri Cardoso lhe arranja emprego), regresso a Portugal, nova prisão, julgamento, pena simbólica — a democracia nunca julgou os seus verdugos — e, por fim, um cancro que não a impede de dizer: «Não, nunca me arrependi de nada. Os tempos da PIDE foram os mais felizes da minha vida.» A radiografia de Ana Cristina Silva tem a nitidez das evidências. Quatro estrelas. Publicou a Planeta.