quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

MORANTE & BUKOWSKI


Hoje na Sábado escrevo sobre A História, da italiana Elsa Morante (1912-1985), tão arredia da edição portuguesa, ao contrário de seu marido, Alberto Moravia. É bom tê-la de volta. O mais famoso dos seus romances foi agora traduzido por José Lima. À data do lançamento, em 1974, no auge dos anos de chumbo italianos, a celeuma em torno do livro dividiu a intelligentsia marxista. Pasolini, de quem Morante era amiga e colaboradora em vários filmes, foi um crítico violento. Nunca mais se falaram até à morte do cineasta. Embora comece antes e acabe depois, A História centra-se na ocupação de Roma pelos nazis e, em particular, na história pessoal de Ida Ramundo, professora, judia, vítima de estupro (em sua própria casa) por um soldado alemão, bêbedo, incapaz de perceber que a epilepsia fizera Ida perder por momentos a consciência. Useppe, o segundo filho, nasceu em resultado. Mas o romance centra-se sobretudo na história da Europa do século XX. Pontuam o livro cronologias detalhadas de convulsões políticas ocorridas entre 1900 e 1967. Como se não fosse possível perceber Ida sem conhecer os porquês das duas Guerras Mundiais, a República de Salò, o estalinismo, as bombas de Hiroxima e Nagasaki, a vitória de Mao Tsé-Tung, o Muro de Berlim, a independência da Argélia, a crise dos mísseis soviéticos em Cuba, a guerra do Vietname, a onda de assassinatos políticos em Itália, o golpe dos coronéis em Atenas, etc. Na sua crueza, na ambiguidade das suas harmónicas («Ela redescobria aquela sensação de realização…»), nem o capítulo da violação dispensa contexto histórico. O relato do conflito é devastador. Morante tem uma escrita seca, precisa, capaz de, sem ênfase retórica, fazer o retrato vívido de personagens secundários (como é o caso de Davide Segre) e, ao mesmo tempo, descrever acontecimentos terríveis em grande angular. Inquéritos e listas valem o que valem, mas, segundo uma pesquisa feita em 1985 pelo jornal Corriere della Sera, A História é (ou era) o mais lido e discutido dos romances italianos contemporâneos. Fora de Itália, é considerado um dos cem romances mais importantes de sempre em qualquer língua. Cinco estrelas. Publicou a Relógio d’Água.

Escrevo ainda sobre Os Cães Ladram Facas, uma antologia da poesia de Charles Bukowski (1920-1994) organizada por Valério Romão a partir de vários livros, alguns póstumos. Selecção de 135 poemas traduzidos por Rosalina Marshall. A edição não é bilingue. No prefácio, Valério Romão alerta o leitor para a possibilidade de vários poemas póstumos terem «sofrido modificações consideráveis à mão do editor, John Martin.» Poeta e escritor do realismo sujo, a obra de Bukowski tem sido reavaliada depois da sua morte. Marginal ao sistema literário, desde cedo cantou as vidas dos deserdados e o absurdo da existência: «Somos pássaros moribundos / somos navios que se afundam — / o mundo balança contra nós […] e chamam ao nosso veneno política.» Clichês autobiográficos plasmados na obra: misoginia inata, sexo promíscuo, abuso de álcool e violência indiscriminada. A precariedade das profissões (operário fabril, carteiro, etc.) não o impediu de escrever dezenas de livros, incluindo seis romances e uma dúzia de colectâneas de contos. A Black Sparrow Press tem feito render o espólio. Três estrelas. Publicou a Alfaguara.