Hoje na Sábado escrevo sobre Mrs. Osmond, de John Banville (n. 1945), o irlandês que é actualmente um dos mais importantes autores vivos de língua inglesa. Só um autor como ele podia, sem cair no ridículo, escrever a sequela de Retrato de Uma Senhora, de Henry James. Fez isso neste seu romance mais recente, prolongamento das aventuras de Isabel Archer, a americana rica que se deixou seduzir por um europeu arrivista. O romance de 1881 é um clássico. Quem não leu James, viu com certeza o filme que Jane Campion fez em 1996, com Nicole Kidman e John Malkovich nos papéis de Isabel e Gilbert Osmond. Mrs. Osmond é um pastiche, com a vantagem suplementar de ‘responder’ ao livro de James, que tem um final ambíguo, coisa que agora não acontece. É provável que alguns jamesianos prefiram a história suspensa. Para muitos deles, é indiferente saber se Isabel volta para Gilbert. Mas esse detalhe hermenêutico vê-se ultrapassado pelo brilho estilístico de Banville, que resgata a intriga das incertezas e equívocos da obra-prima de James, fazendo a transição do romance vitoriano para a narrativa modernista. Isabel continua na Europa, em trânsito pela Inglaterra, França e Itália, porém ligada ao repelente marido. Banville cria novas personagens, sem excluir as de James: o primo Ralph, madame Merle (amante de Gilbert), Henrietta Stackpole e outras. A mais-valia radica no fôlego da escrita, quer se trate de descrições de viagens, factos triviais ou estados de alma: «Além disso, não estava na sua natureza esquivar-se ao dever e às coisas que reclamavam a sua intervenção. Na sua conceção de si mesma, sempre predominara a ideia de que na vida uma pessoa só consegue preservar o que resta da sua honra ao encarar cabalmente as suas más ações e a sua cumplicidade no mal…» O leitor talvez considere excessivo o uso de pronomes possessivos, que têm no texto original um peso diferente daquele que adquirem na língua de chegada, mas a prosódia tem exigências. No confronto com James, Banville dialoga de igual para igual, sobrepondo o virtuosismo da prosa à engrenagem do plot. O resultado é surpreendente. Cinco estrelas. Publicou a Relógio d’Água.
Escrevo ainda sobre A Luz da Guerra, de Michael Ondaatje (n. 1943), poeta consagrado e romancista laureado, conhecido em todo o mundo desde que Anthony Minghella adaptou ao cinema O Paciente Inglês, provavelmente o melhor romance deste canadense nascido no Sri Lanka. A obra mais recente confirma a solidez de uma escrita convencional, porém sedutora. Estamos na ressaca da Blitz londrina, logo após o fim da Segunda Guerra Mundial. A primeira frase dá o tom: «Os nossos pais foram-se embora, deixando-nos ao cuidado de dois homens que podiam muito bem ser criminosos.» O motivo da inesperada partida para Singapura foi um mistério para Nathaniel e Rachel. Por que razão a mãe não levou consigo a mala de porão? Qual a natureza do trabalho que precipitou a partida? Serviços secretos? Fuga a segredos indizíveis? Como de regra, Ondaatje é minucioso nos detalhes da recriação de ambientes, mesmo (como aqui) em registo dickensiano. Do seu lugar de narrador autodiegético, Nathaniel conta como foi. Tudo aconteceu num tempo que a memória filtrou, sem os holofotes do presente. Música de câmara perfeita. Quatro estrelas. Publicou a Relógio d’Água.