Hoje na Sábado escrevo sobre Como a Sombra Que Passa, do espanhol Antonio Muñoz Molina (n. 1956). Pela segunda vez, Lisboa está no centro de uma obra do autor. Aconteceu com o terceiro livro, acontece com o penúltimo. O livro acompanha o percurso de James Earl Ray, o assassino de Martin Luther King que passou nove dias em Lisboa, em Maio de 1968, antes de viajar para Londres, onde seria finalmente preso. A partir do assassinato de Luther King, influente pastor protestante e activista dos direitos dos negros norte-americanos, Molina mistura reminiscências pessoais com factos reais: «Passei demasiadas horas imerso na sua vida, dias inteiros, desde que cheguei a Lisboa.» A introspecção em torno do romance O Inverno de Lisboa (o terceiro livro) acompanha os detalhes desse intervalo lisboeta de Ray. Uma coisa serve a outra. Molina tenta imaginar Ray à deriva na capital portuguesa: um americano pobre, racista, alegadamente sem amigos ou qualquer espécie de contactos em Portugal. Faz isso à boleia da sua experiência de jovem escritor de visita a Lisboa, em 1987 (com apenas dois livros publicados, Molina era então funcionário subalterno da Câmara Municipal de Granada). Terreno escorregadio: dose elevada de autobiografia, dose residual de ficção e ‘reportagem’, nos interstícios uma da outra. Nada que o autor não tenha feito antes. O narrador, Molina himself, cita autores, filmes, actrizes, realizadores, músicos, canções, exegeses de Nabokov, lembranças de Juan Carlos Onetti a pretexto de Lolita, etc., sem que esse estendal de ‘erudição’ tenha relevância para a intriga. Nem sequer serve para contextualizar o caldo de cultura de onde surgem homens como Ray. Mas o exercício deve estar na moda, porque Salman Rushdie faz exactamente o mesmo no seu último romance. Não havia necessidade. A pulcritude de Lisboa é outro óbice. O retrato de Ray é contraditório. Não é plausível ver um fugitivo a encher a bagagem com livros. Um homem que nem tinha a noção de quem era Luther King. Matou-o porque era negro, e os tribunais do Tennessee tendiam a ser benevolentes com assassinos de negros. Em suma, não faz sentido. Três estrelas. Publicou a Ponto de Fuga.
Escrevo ainda sobre O Archote no Ouvido, segundo volume da autobiografia do búlgaro Elias Canetti (1905-1994). Não obstante o Nobel da Literatura, e o facto de ser um dos grandes autores de língua alemã dos últimos cem anos, Canetti tem uma presença discreta na edição portuguesa. O Archote no Ouvido, agora traduzido, é uma boa oportunidade para compreender a sua vida e obra. Este volume reporta aos anos que vão de 1921 a 1931, entre Frankfurt, Viena, Berlim e de novo a capital austríaca. Antes disso tinha havido Manchester, Lausanne e Zurique, cidades onde Canetti viveu a infância, mas O Archote… começa com a chegada à Alemanha, onde o autor fará a sua formação. Descendente de judeus sefarditas, Canetti foi toda a vida um nómada. Em 1938, o Anschluss provocou a fuga de Viena para Londres, tornando-se cidadão britânico em 1952. Massa e Poder (1960), estudo do domínio da multidão sobre o indivíduo, fez de Canetti um nome de referência. Desembaraçadas, eruditas, fluentes, estas memórias corroboram o prazer do texto. Ler Canetti é ler o mundo. Cinco estrelas. Publicou a Cavalo de Ferro.