quinta-feira, 28 de junho de 2018

FONSECA & RUSHDIE


Hoje na Sábado escrevo sobre Calibre 22, de Rubem Fonseca (n. 1925), decano dos escritores brasileiros, gigante da literatura de língua portuguesa. Desta vez errou a pontaria. Acontece aos melhores. Fonseca foi polícia durante seis anos, e grande parte da obra aproveita essa experiência, instalando o mal no interior da própria linguagem. Ninguém o fez como ele. Infelizmente, Calibre 22, uma colectânea de 29 ‘contos’, devia ter ficado na gaveta. Os vindouros pelam-se por inéditos. Curiosa ironia. A Sextante tem vindo a publicar toda a obra de Rubem Fonseca. Mas, no momento de redefinir o seu catálogo (o que aconteceu há dois meses), a editora mudou também o layout dos volumes. Ou seja, o novo formato diz-nos que este é um livro diferente. Fonseca foi sempre excepcional nos contos. Os romances são bons, mas nessa área o Brasil tem melhor. Os contos sim, ímpares, sem equivalente em muitas línguas, daí a expectativa com Calibre 22. A decepção é um murro no estômago. A larga maioria destes ‘contos’ são breves crónicas, simples crónicas medíocres, e chamar-lhes assim roça o elogio, porque a maior parte delas são aquilo a que chamamos posts. Seria pleonástico explicar que conto, género de grande exigência, é outra coisa. Vejamos Ópera, foder e sanduíche de mortadela. Não é ficção, é para-ensaio memorialístico: «Ópera? Acho que não tem nem mesmo no Scala de Milão. Outro dia eu li no jornal […] Mas li errado, não enxergo muito bem…» O texto prolonga o desfasamento com a realidade: «As pessoas não fodem mais […] só os pederastas fodem […] metade da população do mundo é de lésbicas, gays, transexuais e por aí fora. […] Então eu podia imaginar o sofrimento do Evaristo quando descobriu que o filho ia virar filha e não lhe daria netos.» É triste ver um autor deste gabarito cair tão fundo. Numa prosa sibilina, Paulo Francis escreveu coisas tão disparatadas como estas (um autor tem direito a entesourar os seus equívocos), mas nunca lhes chamou contos. Os géneros literários perderam as balizas fundadoras? São os editores que decidem? Em suma, torna-se penoso ler Calibre 22. O problema é mesmo a prosa chilra. Uma estrela. Publicou a Sextante.

Escrevo ainda sobre A Casa Golden, de Salman Rushdie (n. 1947). Passaram trinta anos sobre a fatwa de Khomeini sobre o autor. É provável que muitos dos seus actuais leitores desconheçam o facto e suas sequelas. Rushdie vive hoje em Nova Iorque, e o seu romance mais recente, A Casa Golden, é um fresco da América actual. Abre com a ‘inauguração’ de Obama e a chegada a Manhattan, após o sangrento ataque ao Taj Mahal Palace Hotel, de um magnata de Mumbai acompanhado dos três filhos. Além da família de Nero Golden, cabe tudo no romance: centenas de filmes, actores e realizadores, dezenas de citações literárias, a homofobia de Rushdie, a caricatura das questões identitárias, o Tea Party, a cultura pop, a controvérsia do Gamergate, a xenofobia, a political correctness, o envenenamento de Litvinenko, o colapso do comunismo, as Primaveras árabes e mais uma dúzia de acontecimentos planetários. Até Trump, nomeado como Gary Green Gwynplaine, vulgo Joker, e com cabelo verde-lima. Uma parábola do admirável mundo novo? A escrita é brilhante, mas Rushdie confunde sarcasmo com reaccionarismo. Quatro estrelas. Publicou a Dom Quixote.