quinta-feira, 17 de maio de 2018

WOOLF & GOMES


Hoje na Sábado escrevo sobre Diários de Virginia Woolf (1882-1941). O leitor fará decerto a mesma pergunta: porquê o plural? Porquê Diários...? A exemplo de outros autores, Virginia Woolf podia ter escrito e publicado vários, mas não o fez. Como procede do título original — The Diary of Virginia Woolf —, trata-se de obra única, parcialmente divulgada por Leonard Woolf, em 1953 (ou seja, doze anos depois da morte da mulher), com o título A Writer’s Diary. Para o ler na íntegra, seria preciso esperar por 1984, ano em que Anne Olivier Bell e Andrew McNeillie deram à estampa o quinto volume do diário completo. Em 1985 e 1987, foi a partir dessa edição que Maria José Jorge publicou em dois volumes uma selecção do diário de Virginia Woolf. E é novamente a partir dela que Jorge Vaz de Carvalho publica, em volume único, a presente tradução. Jorge Vaz de Carvalho começa um dia mais cedo. Mas logo no dia seguinte, 2 de Janeiro de 1915, salta quatro linhas: os comentários de Mrs. Le Grys, o conde lambareiro, etc. Fazem aqui falta parêntesis rectos, porque a maioria dos leitores não sabe que, entre «comida frita em manteiga» e «Depois disto» (p. 17), existem frases omissas.  O processo repete-se ao longo do livro. Não vem daí mal ao mundo, o responsável pela edição tem liberdade de escolha, mas, na mesma entrada, as interrupções de discurso têm de estar sinalizadas. Isto dito, é fascinante ler o diário de alguém que esteve na origem do mundo moderno tal como o conhecemos. Com efeito, Virginia Woolf, os irmãos e os amigos, mais os amantes de todos eles, deram, a partir de Bloomsbury, uma guinada nos costumes vitorianos. Como disse um dia Petra Kipphoff, tudo era permitido, excepto a estupidez, a falta de estilo e de graciosidade. Por estas páginas passa gente tão decisiva como T. S. Eliot, John Maynard Keynes, Bertrand Russell, E. M. Forster, Katherine Mansfield, Aldous Huxley e dezenas de outros (cito apenas um punhado de nomes incontornáveis), embora alguns dos episódios mais interessantes sejam de terceiros. Lamenta-se a ausência de índice onomástico. Quatro estrelas. Publicou a Relógio d’Água.

Escrevo ainda sobre Florinhas de Soror Nada, o romance mais recente de Luísa Costa Gomes (n. 1954). Uma autora com os seus recursos narrativos, salta com facilidade entre géneros literários. Não admira que no conto, como no romance e no teatro, a fasquia tenha estado sempre lá em cima. Este mantém a bitola. Num autor menos apetrechado, a história de Teresa Maria, a criança que queria ser santa à maneira da outra, a de Ávila, até ao dia em que faz apostasia, tenderia a roçar o kitsch. Mas a autora controla o discurso com sageza: «Mencionando a natureza demoníaca da mulher […] chegou o padre depois de muitos rodeios à questão vexante.» Sexo, naturalmente. Teresa Maria é o ponto de partida da efabulação. Como quem não quer a coisa, o romance ilustra o regime de beatério em que sucessivas gerações de portugueses foram educados. Que isso seja feito com desenvoltura, ironia («A Madre Superiora ainda não morrera e já trazia a múmia de Santa Catarina em projecto na face») e distância crítica, é factor de mérito acrescido. Isso, e os episódios pícaros que pontuaram as vidas da Legenda Áurea. Quatro estrelas. Publicou a Dom Quixote.