quinta-feira, 3 de maio de 2018

MILOSZ & GAUTIER


Hoje na Sábado escrevo sobre A Mente Aprisionada, do polaco Czeslaw Milosz (1911-2004), obra-prima de 1953 só agora traduzida em Portugal. Milosz, um dos poetas mais importantes do século XX, continua praticamente inédito no nosso país. Publicado antes da Revolução Húngara de 1956 e da Primavera de Praga de 1968, o ensaio suscitou enorme controvérsia: «Os admiradores do comunismo soviético consideraram-no insultuoso e os anticomunistas acusaram-no de não expressar uma posição política clara e inequívoca, e suspeitaram que, no fundo, o autor seria marxista.» Como tantas vezes acontece, Milosz sofreu o ónus de ter razão antes de tempo. Poeta, ensaísta e diplomata, Milosz, oriundo da nobreza lituana, cresceu sob domínio czarista russo, mas já vivia em Varsóvia quando o exército alemão ocupou a cidade e exterminou a comunidade judaica. Durante a guerra traduziu The Waste Land, de T.S. Eliot. Aos 40 anos abandonou a carrière, fixando-se em Paris. A facilidade com que viajou de Washington, onde estava colocado, para a capital francesa, deu azo a especulações nunca esclarecidas. Os seus livros foram proibidos na Polónia e Camus foi o único intelectual que o apoiou. Docente de Berkeley a partir de 1960, participou da revolução contracultural dos sixties, naturalizando-se americano em 1970. Tendo recebido o Nobel da Literatura em 1980, seria preciso esperar pelo colapso da URSS para obter a projecção planetária que lhe era devida. A Mente Aprisionada questiona o comportamento dos seus pares face ao totalitarismo: «O intelectual fica de olhos a brilhar ao ver a sociedade dar caça à burguesia […] A principal característica deste intelectual é o medo que tem de pensar pela sua cabeça.» O que faz um escritor numa democracia popular? O que o motiva? A partir de obras ‘canónicas’, Milosz explica. São quatro os escritores analisados como padrão da vertigem do absurdo. O exemplo de Stanislaw Ignacy Witkiewicz, que se suicidou quando o Exército Vermelho entrou na Polónia, dá o mote. Mas nem só os intelectuais marxistas são postos em causa. O exército soviético, que fez vista grossa ao massacre da resistência polaca por parte dos nazis, é outro item melindroso. Leitura imprescindível. Cinco estrelas. Publicou a Cavalo de Ferro.

Escrevo ainda sobre Constantinopla, do francês Théophile Gautier (1811-1872). A cidade, actual Istambul, tem sido fonte de constante fascínio por parte de poetas, artistas e intelectuais tout court. Poeta, romancista, escritor de viagens, libretista e crítico de arte, Gautier não foi o primeiro a deixar-se seduzir pela metrópole turca. Publicado em 1853, Constantinopla deveio um clássico da literatura de viagens. Financiado por Emile Girardin, proprietário do jornal La Presse, Gautier partiu em 1852 para a capital do Império Otomano. Ali permaneceu dois meses, na companhia da cantora Ernesta Grisi, e o resultado foi uma narrativa atenta, culta, extremamente detalhada, das gentes («rapazes de bigodes rebarbativos...», os «narizes martelados», o tom de pele «charuto de Havana»), do quotidiano, práticas religiosas e tradições, durante o curto reinado de Abdul Mejide, o sultão sobre quem Gautier tece considerações. Embora sedutora, a escrita de Gautier não confere à cidade o recorte cenográfico, por vezes ‘dramático’, que o italiano Edmondo de Amicis lhe deu (a sua Constantinopla saiu um quarto de século mais tarde), mas nem por isso a leitura é menos aliciante. O volume inclui variada iconografia. Quatro estrelas. Publicou a Relógio d’Água.