Hoje na Sábado escrevo sobre o romance de estreia de Julio Cortázar (1914-1984), Os Prémios, finalmente traduzido. Não foi o primeiro que o autor escreveu, mas foi o primeiro a ser publicado, antecipando O Jogo do Mundo (1963), o livro da consagração, epítome da ruptura com o modelo clássico da ficção latino-americana. A trama é simples: os vencedores da lotaria têm direito a um cruzeiro. O destino é desconhecido e há regras a cumprir. Depois de um encontro no café London, de Buenos Aires, um grupo de contemplados aceita embarcar num cargueiro misto da Magenta Star. Como o embarque se faz às escuras, desconhecem o nome do navio, Malcolm. Deveras enigmático. Nenhum deles tem afinidades entre si: nem origem social, nem profissão, nem convicções ideológicas, nem conta bancária, nem sequer as razões pelas quais aceitaram o prémio. A partir daí, tudo gira em torno do quotidiano de Lucio, Nora, Medrano, Paula, Raúl, Claudia, Felipe, Persio e outros. Idiossincrasias, equívocos, sexo (área em que Cortázar revela exemplar à-vontade), rancores, pusilanimidades, intrigas, decepções, arrivismo, prosápia intelectual, atritos, tudo contribui para fazer daquele peculiar microcosmo um retrato da sociedade da época. Persio, provável alter ego de Cortázar, parece ser o único com a chave dos acontecimentos. Medo e perplexidade face ao desconhecido. A existência de tifo a bordo piora a situação. Por que motivo o navio foi autorizado a partir com tripulantes doentes? Porquê a inexplicada ancoragem? A proibição de aceder à ponte tem a ver com o tifo? A tripulação nada esclarece e o seu mutismo provoca um motim entre os passageiros. O desfecho pícaro quadra de viés com a retórica existencialista. A grelha semântica seria afinada com O Jogo do Mundo, mas, por enquanto, largas passagens são redundantes. Filho de um diplomata argentino, Cortázar nasceu na Bélgica, poucas semanas após a eclosão da Primeira Guerra Mundial. Mais tarde viveu na Argentina, onde publicou contos e outros textos. Em 1951, descontente com o regime de Perón, fixa-se em Paris como tradutor da Unesco. Em 1981, em protesto contra a ditadura militar de Videla e Viola, solicita e obtém a nacionalidade francesa. Quatro estrelas. Publicou a Cavalo de Ferro.
Escrevo ainda sobre Publicação da Mortalidade, a poesia reunida de Valter Hugo Mãe (n. 1971). Mais conhecido como ficcionista, o autor voltou à poesia. Melhor dito, reuniu num único volume os poemas definitivos. Os livros originais foram agrupados sem referência à primeira publicação. Nenhuma introdução ou simples nota indica os critérios da recolha. O leitor terá de descobrir por si os poemas omissos ou de tal modo alterados que devêm inéditos. Valter Hugo Mãe tinha dez livros de poesia publicados quando o primeiro de sete romances fez dele um autor mediático. Portanto, o grande mérito desta poesia reunida consiste na demonstração do conseguimento do autor enquanto poeta (em detrimento do ficcionista, entenda-se). Numa época em que a narrativa vive refém da retórica mais adiposa, a sua poesia não tem medo da elipse: «vem ver-nos / tarda nada chega a primavera / e as flores que plantámos no / quintal vão florir como / símios loucos aos teus pés». A lição modernista é recuperada com brio. Noutro registo, a sequência «os olhos encaracolados de sonho» (um extenso poema) dá a medida do fôlego do poeta. Quatro estrelas. Publicou a Assírio & Alvim.