quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

MOSER & ROTH


Hoje na Sábado escrevo sobre Porquê Este Mundo, a biografia de Clarice Lispector escrita por Benjamin Moser (n. 1976). Moser é um americano do Texas que estudou em Paris e viveu vários anos no Brasil. Os primeiros autores que leu em português foram Machado de Assis e Clarice: nunca mais foi o mesmo depois de ler A Hora da Estrela. A vida de Clarice dava um romance e, nessa medida, não virá mal ao mundo se lermos como tal Porquê Este Mundo. Publicada em 2009, esta biografia revela-nos uma Clarice em grande angular. Sem beliscar o rigor intelectual da pesquisa, a escrita ágil do autor torna a leitura aliciante. Chaya Lispector nasceu em Tchetchelnik, na Ucrânia (então território russo), em Dezembro de 1920, no seio de uma família judaica. O desemprego, a fome e os pogroms anti-semitas tornavam a vida insustentável. Impedida de emigrar para os Estados Unidos, a família foi para o Brasil em 1921. Chegados a Maceió, mudaram todos de nome, e Chaya virou Clarice. Assim nasceu aquela que viria a ser uma lenda da vida literária brasileira, a Esfinge, como era conhecida. Moser detalha os pormenores da odisseia migratória, contextualizando a situação política da Europa no pós-Primeira Guerra Mundial. O autor acompanha também o dia-a-dia de Clarice nas suas diversas fases: criança, adolescente, curso de Direito, casamento com o diplomata Maury Gurgel Valente, mãe, escritora. Os anos no estrangeiro (1944-59) na companhia do marido, os dois filhos, o divórcio (1959), as depressões, o cão Ulisses, o trágico incêndio de 1966 (adormeceu a fumar), a mão inutilizada, a doença e, na véspera de completar 57 anos, a morte por cancro nos ovários. Como disse Paulo Francis, Converteu-se na sua própria ficção. Moser não descura a obra — romances, contos e crónicas —, analisada sob vários ângulos, por vezes em close reading, desde o abalo causado pelo primeiro livro, Perto do Coração Selvagem (1943), autêntico sismo na ficção escrita em português. Mas também os sobressaltos editoriais, a recepção crítica, as traduções, os encontros e desencontros, rumores e mal-entendidos. Uma vida. Além de índice remissivo, o volume inclui 60 páginas de notas, bibliografia e portfolio fotográfico. Cinco estrelas. Publicou a Relógio d’Água.

Escrevo ainda sobre Confissão de um Assassino, do austríaco Joseph Roth (1894-1939), autor refractário à edição portuguesa que, num curto lapso, teve dois livros nas livrarias. O mais recente, Confissão de um Assassino, obra de 1936, tem por subtítulo Relato de uma noite. Ainda jovem, Roth trocou Viena por Berlim, e foi na capital alemã que ganhou notoriedade como jornalista. Mas no próprio dia em que Hitler foi nomeado chanceler, Roth embarcou para Paris, cidade onde viveu até morrer. Oriundo de uma família judaica de costumes liberais, homem de esquerda, nunca se recompôs do colapso do Império Austro-Húngaro. Um dos seus livros mais conhecidos, A Marcha de Radetzky (1932), traduzido entre nós, é justamente sobre as consequências do ocaso dos Habsburgos. Confissão de um Assassino ilustra o ambiente febril de Paris nas vésperas da Primeira Guerra Mundial. As confissões de Golubchik, exilado russo, alegado filho de um príncipe e antigo agente da polícia secreta do czar, servem de pretexto para discretear sobre identidade e natureza humana. Num estilo tenso, Roth denuncia a iniquidade da burocracia totalitária, bem como o equívoco entre vida privada e deveres de Estado. Quatro estrelas. Publicou a Cavalo de Ferro.