Hoje na Sábado escrevo sobre Bom Dia, Tristeza de Françoise Sagan (1935-2004). Em Março de 1954, a vida literária francesa foi abalada por um escândalo não previsto: uma adolescente de 18 anos acabava de publicar o seu primeiro romance, Bonjour Tristesse. Nunca uma menor de idade ousara desafiar as convenções. Sagan não vinha do bas-fond nem estava por conta de um editor oportunista. Pelo contrário, era filha da grande burguesia industrial francesa e frequentava o beau monde mais exclusivo. A sua passagem por um convento tinha sido uma vénia à tradição de libertinagem do século XVIII. As ondas de choque não impediram que o livro tivesse vencido o Prémio dos Críticos, por decisão de um júri que incluía gente como Bataille, Caillois e Blanchot. O filósofo existencialista Gabriel Marcel foi um dos seus defensores. Bom Dia, Tristeza regressa agora às livrarias portuguesas, na tradução de Isabel St. Aubyn, a mais recente das três que o livro teve em Portugal. Sagan fala sem eufemismos das exigências do corpo, de consumo de álcool e drogas, de relações livres: «Anne acariciava-me o cabelo, a nuca, muito terna. […] Nunca experimentara uma fraqueza tão usurpadora, tão violenta. Fechei os olhos. Parecia-me que o meu coração cessara de pulsar.» Era o início de uma Obra desigual mas prolífica: vinte romances e vários volumes de diário e memórias. Muitos dos seus livros foram adaptados ao cinema (a começar por este) e ao teatro, porque Sagan se tornou uma figura planetária e, sem que ainda se soubesse, a última escritora mundana. A imprensa nunca mais a largou: militância política contra a Guerra da Argélia e no Maio de 68, casos amorosos com homens e mulheres (a jornalista Annick Geille foi sua companheira durante muitos anos), dois casamentos e um filho, cocaína, orgias, noites de roleta em Monte Carlo, o traumático acidente quando conduzia o Aston Martin, o envolvimento com Mitterrand no caso do petróleo do Uzbequistão, acusações por fraude fiscal, doença e morte. Esta reedição em capa dura inclui ilustrações de Mily Possoz, o fac-símile do despacho da PIDE — que classificou o livro como «francamente amoral» —, e posfácio de Jorge Reis-Sá. Quatro estrelas. Publicou a Casa dos Ceifeiros.
Escrevo ainda sobre Morte pela Água, do japonês Kenzaburo Oe (n. 1935), Prémio Nobel da Literatura em 1994. Com meia dúzia de livros traduzidos no nosso país, o autor regressa às livrarias portuguesas com o seu romance mais recente, em tradução de Helder Moura Pereira feita a partir a edição de língua inglesa. O título é ‘roubado’ a The Waste Land, de T. S. Eliot. O narrador é Kogito Choko, alter-ego do autor que os leitores conhecem de obras anteriores. Pode-se dizer que Morte pela Água é um livro-testamento, a obra de um escritor que chega a um ponto da sua vida em que se vê coagido a mergulhar em lembranças remotas: a infância no campo e o tempo em que acalentava o sonho de ser escritor. Por outro lado, o conflito com as ambiguidades do Japão ‘imperial’ é um tema obsessivo. Além de Eliot e A Terra Devastada, Kenzaburo põe em pauta outras obras e autores, sendo Edward Said, que foi seu amigo, um deles. Iconoclasta, controverso, Kanzaburo Oe recusou a Ordem da Cultura por não reconhecer autoridade ao Imperador. Quatro estrelas. Publicou a Livros do Brasil.