quarta-feira, 4 de outubro de 2017

VALE FERRAZ & McBRIDE


Hoje na Sábado escrevo sobre A Última Viúva de África, de Carlos Vale Ferraz, pseudónimo literário de um antigo oficial do Exército (nascido em 1946) que é também investigador de história contemporânea portuguesa. O autor acaba de publicar mais um romance, desta vez centrado na figura de uma mulher que terá sido agente dupla na província congolesa do Catanga, antes, durante e após a breve secessão liderada por Tshombé. Estamos portanto no território de eleição do autor: África e conflitos independentistas. De uma bibliografia mais vasta, destacaria dois títulos: o romance Nó Cego (1983), obra de referência sobre a guerra colonial, e o ensaio histórico Alcora. O Acordo Secreto do Colonialismo (2016), escrito em parceria com Aniceto Afonso. Vale Ferraz tem uma escrita escorreita e um traquejo natural para diluir na ficção alguma da informação “classificada” que esteve por trás de factos reais, enriquecendo o romance com essa mais-valia. Numa breve nota introdutória, não assinalada como tal, o autor socorre-se da historiadora Dalila Cabrita Mateus para caucionar a existência da enigmática Madame X, «nome de código de uma informadora residente em Leopoldville…». Madame X foi uma portuguesa que emigrou para o antigo Congo Belga nos anos 1950, fixando-se na região do Catanga, e em África permaneceu quase toda a vida, malgrado os solavancos da História. No livro, Madame X chama-se Alice Oliveira ou, para os mercenários da secessão do Catanga, Kisimbi. O acto derradeiro foi partir para a Nova Zelândia, onde morreu. A trasladação do seu corpo para Portugal envolve peripécias que servem de fio condutor do plot. A partir de Leopoldville, Madame X terá alertado a Pide e as autoridades angolanas para a iminência do massacre (oitocentos colonos brancos e milhares de negros chacinados por guerrilheiros da UPA em toda a Baixa do Cassange) iniciado na noite de 15 de Março de 1961. Não obstante a folga do aviso, uma semana, mais coisa menos coisa, Luanda não reagiu. A posteridade regista esses dias de horror e não é a primeira vez que a ficção portuguesa faz deles cenário do inenarrável. O mérito de Vale Ferraz consiste em coser as várias pontas da guerrilha nacionalista com os interesses da geo-política internacional. Quatro estrelas. Publicou a Porto Editora.

Escrevo ainda sobre Pequenos Boémios, o segundo e mais recente livro de Eimear McBride (n. 1976). Depois do êxito retumbante da estreia, Eimear mantém a peculiaridade da sintaxe, próxima da escrita automática dos surrealistas ortodoxos. Isso pode desconcertar o leitor, embora a maior parte das vezes ele acabe “capturado” pelo fluxo de consciência da autora. A transgressão mantém-se de regra. O ménage à trois descrito nas páginas 143-44 é um bom exemplo, até de como as elipses narrativas não afectam o discurso (e, neste caso concreto, nem sequer diminuem o teor de erotismo). Tal como fez a autora na adolescência, a narradora é uma rapariga de dezoito anos que vai para Londres estudar teatro, envolvendo-se emocionalmente com um actor mais velho. Decorrendo a acção nos anos 1990, a tentação da leitura auto-referente é grande. O romance lê-se como um diário de sexo, escrito em jargão cru (vénia à tradução), de modo a pôr teenagers em ponto rebuçado. Ao contrário do que vem exarado na badana, Eimear não nasceu na Irlanda. Nasceu na Inglaterra, em Liverpool, e só aos três anos de idade foi para a Irlanda. Em 1993 voltou para Inglaterra, onde vive. Três estrelas. Publicou a Elsinore.