quinta-feira, 12 de outubro de 2017

ROTH & TELLER


Hoje na Sábado escrevo sobre O Escritor Fantasma, de Philip Roth (n. 1933), um dos mais importantes autores americanos contemporâneos. O Escritor Fantasma inaugurou a série de Nathan Zuckerman, composta por nove romances publicados entre 1979 e 2007. Zuckerman, alter-ego do autor, começa a compor aqui o seu sulfuroso retrato da América. Diz-se muitas vezes que um livro vale pela primeira frase, e este corrobora a lenda: «Era a última hora de luz de uma tarde de dezembro, há mais de vinte anos…» Foi a tarde em que Zuckerman encontrou Lonoff. Nathan Zuckerman, o narrador, é um escritor em início de carreira apostado em pedir o «patrocínio moral» de Emanuel Isidore Lonoff, um par consagrado. O encontro de ambos suscita uma digressão pelas origens de Roth (a comunidade judaica de Newark), vários aspectos das obras respectivas, alfinetadas no meio literário, a moda dos questionários e, como sempre, muito sexo. O virtuosismo é de regra: «trocar insultos em pleno cio não era o meu afrodidíaco preferido…» Tudo se passa em Nova Iorque, nos fifties, e ambos são judeus. Tratando-se de um microcosmo tão peculiar, a paleta de temas é dominada pelos avatares da literatura e as idiossincrasias identitárias dos judeus. O Holocausto não é esquecido. A saga de Anne Frank vem à baila, a partir da encenação do Diário na Broadway, mas o imaginário de Roth causou atrito com os judeus novaiorquinos, enfurecidos com a licença poética de fazer de Amy Bellett, uma protégé de Lonoff, a verdadeira Anne Frank. Dito de outro modo: Anne Frank teria sobrevivido ao tifo contraído no campo de Bergen-Belsen, vivendo com um nome falso nos Estados Unidos (o Diário perderia todo o interesse se soubessem que estava viva). Com essa convicção, Zuckerman prolonga e acrescenta a odisseia de Anne Frank, numa longa narrativa pontuada de detalhes heterodoxos. A heresia não foi esquecida, e o anunciado Pulitzer foi parar às mãos de Norman Mailer. De nada lhe valeu insistir na dicotomia entre autor e narrador. O prémio chegaria dezoito anos mais tarde, por Pastoral Americana, o sexto romance de Zuckerman. Cinco estrelas. Publicou a Dom Quixote.

Escrevo ainda sobre Nada, da dinamarquesa Janne Teller (n. 1964). Publicado em 2001 e destinado a adolescentes, gerou controvérsia na Escandinávia, tendo sido retirado das bibliotecas das escolas do ensino secundário. Mas o ministério da Cultura atribuiu-lhe o prémio de Literatura Infantil, e a situação foi sendo revertida. Porquê a controvérsia? Porque o livro faz luz sobre a imensa crueldade das crianças. Pierre Anthon, filho de hippies retardados, é o herói deste Satyricon para menores. Nada vale a pena é o seu lema e, nessa medida, cada um deve desfazer-se de algo que tenha significado para si. A purga existencial começa com tralha doméstica, mas depressa atinge o paroxismo. Se uma aluna quer cortar o dedo indicador de um colega, corta-se o dedo ao colega. Se outra quer exumar um bebé, faz-se a exumação do cadáver. Se outra quer decapitar uma cadela, serra-se a cabeça do animal. E assim sucessivamente, com envios a Nietzsche para caucionar a “criatividade”. Os rapazes colaboram. Janne Teller é uma economista que trabalhou nas Nações Unidas e na Comissão europeia e viveu em vários países. Escreve romances e ensaios. Três estrelas. Publicou a Bertrand.