Hoje na Sábado escrevo sobre o primeiro dos três volumes que compõem O Teu Rosto Amanhã, um dos romances mais famosos do espanhol Javier Marías (n. 1951). Este primeiro volume, que agora voltou às livrarias, tem por subtítulo Febre e lança. Eterno nobelizável, romancista, ensaísta e tradutor dos mais notáveis entre os seus pares europeus e americanos, Javier Marías serve-se da sua vasta experiência anglo-saxónica (viveu a infância e parte da adolescência nos Estados Unidos, onde o pai se exilou por causa de Franco) para construir a teia oxbridge que está no centro do romance. O narrador tem o dom de ler as consciências, antecipando comportamentos e acontecimentos futuros: «A mim pagaram-me para contar o que ainda não era nem tinha sido...» Como será o nosso rosto amanhã? A ideia de uma organização secreta, porventura inexistente, apostada em escrutinar um futuro a haver, remete para Philip K. Dick e outros. Tudo começa com o pacto estabelecido entre Jacques Deza e Sir Peter Wheeler, esse «falso ancião» capaz das maiores maquinações. Escrito e publicado em 2002, este primeiro volume de O Teu Rosto Amanhã oscila entre o presente e o passado, com ênfase particular nos meandros da Guerra Civil Espanhola. Jacques Deza, provável alter-ego do autor, e narrador autodiegético da obra, não deixa escapar nada: esquecimento, traição, racismo, ódios, sexo, filosofia, serviços secretos britânicos e russos, repressão franquista, Hugo Chávez, Literatura, Tristram Shandy (uma das traduções de Javier Marías), Ian Fleming, Orwell, Geração de 27, gossip diplomático, Margaret Thatcher, idiossincrasias, Brecht, etc. Em pano de fundo omnipresente, o Mal, na peculiar concepção do autor: «Hoje existe um gosto de se expor ao mais baixo e vil, ao monstruoso e ao aberrante…» Por vezes, a sintaxe cola-se à forma de inventário (acontece nas citações bibliográficas inseridas na narrativa), mas não se trata de menor apuro. Javier Marías domina todos os recursos estilísticos, encaixando na prosa, com naturalidade, registos aparentemente antagónicos. A tentação do ensaio surge nos interstícios da narrativa, facto que não é novidade na obra ficcional do autor. O mesmo se diga do excesso de apontamentos eruditos. Este volume inclui iconografia. Cinco estrelas. Publicou a Alfaguara.
Escrevo ainda sobre O Livro de Emma Reyes. A infância da pintora colombiana Emma Reyes (1919-2003) está contida nas 23 cartas que preenchem o Livro. Emma nasceu num bairro de lata de Bogotá, tendo sido entregue ainda criança ao ‘cuidado’ de uma mulher que a mantinha trancada num quarto sem janelas, sem água e sem luz eléctrica. Mais tarde foi internada num convento de freiras onde durante 15 anos sofreu abusos de vária ordem. Dos pais não há notícia. Depois da evasão (1938) aprendeu a ler e escrever, viajou à boleia pela América Latina, casou no Uruguai e ganhou uma bolsa para estudar em Paris, onde casaria pela segunda vez e privaria com Germán Arciniegas e outros. Foi Germán quem a convenceu a pôr o passado por escrito (o livro foi publicado em 2012 por decisão dos herdeiros do historiador). As cartas começam no dia em que De Gaulle abandonou o Eliseu. Este volume inclui o fac-símile dessa primeira carta, bem como desenhos. Emma Reyes faz o relato do indizível sem autocomplacência: «Nesse ano, e por culpa do Diabo, o Papa não recebeu o nosso presente.» Não obstante a secura, terrível. Cinco estrelas. Publicou a Quetzal.