quinta-feira, 21 de setembro de 2017

CASTRO & WHITEHEAD


Hoje na Sábado escrevo sobre O Anjo Pornográfico, a biografia de Nelson Rodrigues escrita por Ruy Castro (n. 1948), uma das grandes vozes em língua portuguesa. As suas biografias de Garrincha, Carmen Miranda e Nelson Rodrigues, bem como a história da Bossa Nova, valem por obras inteiras, de ficção e ensaio. O Anjo Pornográfico acaba de ser publicado em Portugal, e embora o livro seja de 1992, conserva todo o ímpeto a que Nelson tem direito. No nosso idioma nunca li nada equivalente. Numa breve introdução, Ruy Castro avisa: o livro é sobre «um escritor a quem uma espécie de imã demoníaco (o acaso, o destino, o que for) estava sempre arrastando para uma realidade ainda mais dramática do que a que ele punha sobre o papel.» Quem leu Nelson Rodrigues (1912-1980), dramaturgo, cronista, romancista, contista, repórter e guionista, sabe que esse homem controverso e excessivo irritou a Esquerda, a Direita, os liberais, os católicos, os vanguardistas, até mesmo a ‘maioria silenciosa’. Porém, foi ele quem, em 1943, com Vestido de Noiva, fez o teatro brasileiro entrar no século XX. Apoiante da ditadura militar brasileira, depôs em tribunal a favor de amigos acusados de ‘terrorismo’, ao mesmo tempo que negociava com o general Médici uma saída airosa para Nelsinho, o filho envolvido com a guerrilha urbana sob o pseudónimo de Prancha (o rapaz foi torturado em 1972, contra ordens superiores). Desconcertante, livrou da prisão e da tortura muitos intelectuais esquerdistas. Mas Ruy Castro não se atém aos anos em que Nelson era já um dramaturgo e intelectual público célebre. As origens familiares no Recife (repórter intrépido, o pai, Mário Rodrigues, teve catorze filhos: Nelson foi o quinto) são descritas com tal minúcia que o leitor julga estar a ler um bom romance. A carreira jornalística e literária são ilustradas com factos e anedotário que compõem um fresco da vida cultural e política brasileira ao longo de várias décadas. O volume inclui fotografias e índice onomástico, bem como a bibliografia de Nelson, a qual refere os vinte filmes feitos a partir de obras suas. Cinco estrelas. Publicou a Tinta da China.

Escrevo ainda sobre A Estrada Subterrânea, de Colson Whitehead (n. 1969), que após um intervalo de catorze anos regressa à edição portuguesa com o seu sexto romance, vencedor do Pulitzer de Ficção 2017 e outros prémios importantes. Tendo o seu primeiro livro, A Instituição É Tudo, passado despercebido entre nós, pode ser que a história de Cora e César (por que razão o tradutor manteve o original Caeser?) cative os leitores para a obra do autor. Cora e César são dois escravos que utilizam a famosa Underground Railroad, a rede subterrânea clandestina que no século XIX permitiu a fuga de dezenas de milhares de escravos do Sul esclavagista para os Estados abolicionistas do Norte. Contado na terceira pessoa, o livro ilustra o quotidiano da época, em particular a bipolaridade política dos brancos da Carolina do Norte: «Forjámos esta nação separada, livre das interferências do Norte e do contágio de uma raça inferior.» Whitehead intercala realidade e “fantástico” (o livro também recebeu o prémio Arthur C. Clarke para literatura de ficção científica), de forma a enfatizar a saga das vítimas dos «cavaleiros da noite». Não teria sido mais simples usar o acrónimo abominável de KKK? Quatro estrelas. Publicou a Alfaguara.