quinta-feira, 17 de agosto de 2017

NAIPAUL & DONOGHUE


Hoje na Sábado escrevo sobre a reedição, com nova tradução, de Para Além da Crença, de V. S. Naipaul (n. 1932). Uma reedição deveras oportuna. Em 1998, quando o livro foi publicado, ainda o tema do Islamismo não fazia manchetes. Oriundo de uma família indiana radicada em Trindade, Naipaul, autor britânico, tornou-se célebre por uma obra consistente que faz da denúncia da corrupção política o item central. Quando em 2001 recebeu o Nobel da Literatura, foi isso mesmo que a Academia Sueca sublinhou. Em Para Além da Crença, o foco é a religião. O livro resulta de uma viagem de Naipaul a quatro países muçulmanos não-árabes (a Indonésia, o Irão, o Paquistão e a Malásia), prolongando o relato, sobre os mesmos países, iniciado com Entre os Crentes, publicado em 1981, no auge dos excessos da teocracia iraniana. Naipaul é peremptório em várias das suas conclusões, embora faça questão de exarar que este «não é um livro de opiniões». Por exemplo, o Islamismo seria uma forma de imperialismo, uma forma de reagir à globalização: «O Islão e a Europa, dois imperialismos em competição, tinham chegado à Indonésia quase ao mesmo tempo, e, juntos, haviam destruído o longo passado budista-hinduísta.» A estratégia narrativa faz lembrar a de Svetlana Alexievich, ou seja, a de deixar os outros falar. A diferença reside no facto de Svetlana não largar a pele de repórter, enquanto Naipaul não abdica do estatuto de autor. Ela compõe reportagens, ele conta histórias: «Este é um livro sobre pessoas.» E de facto assim acontece, porque são os seus retratos que nos transmitem a natureza desses países. Como entender a Indonésia de Suharto, o homem dos brutais massacres dos anos 1960, sem conhecer a história de Imaduddin? O mesmo se diga de Mehrdad e da Teerão dos aiatolas. Ou da realidade malaia vista pelos olhos de Syed Alwi. O capítulo dedicado ao Paquistão (e o pecado original da secessão com a Índia) é muito interessante: «Ao fim de quarenta anos de cinismo e preguiça intelectual, o Estado, que, de início, era para alguns idêntico a Deus, tornara-se uma empresa criminosa.» Está na altura de um terceiro périplo. Cinco estrelas. Publicou a Quetzal.

Escrevo ainda sobre O Prodígio, de Emma Donoghue (n. 1969), romancista, contista, dramaturga, argumentista e historiadora do lesbianismo na literatura. A autora nasceu na Irlanda mas vive no Canadá, país que adoptou como seu e onde escreveu quase toda a obra. Com uma bibliografia extensa e abarcando vários géneros, O Prodígio é o segundo dos seus livros a ser traduzido em Portugal. Enquanto não chega Room, romance de 2010 inspirado no caso Josef Fritzl (o homem que encarcerou e abusou da filha durante mais de vinte anos), O Prodígio é um bom exemplo do à-vontade da autora a ficcionar temas perturbantes dos nossos dias. Com uma escrita fluente que transmite a natureza sinistra dos factos, tais como o jejum forçado de uma jovem rapariga, Donoghue construiu a sua história apoiada em relatos históricos. Aqui vemos como Lib Wright, uma enfermeira contratada por membros influentes da aldeia de Athlone, vai interagir com Anna O’Donnell. Estamos na segunda metade do século XIX, na Irlanda profunda que mal sobreviveu à Grande Fome dos anos 1840. Se Anna resistisse poderia até ser canonizada, o que não acontecia há muito tempo com nenhum irlandês. É neste quadro fantasmagórico que Donoghue nos força a conhecer uma realidade abominável. Quatro estrelas. Porto Editora.