quinta-feira, 20 de julho de 2017

FILIPA MELO


Hoje na Sábado escrevo sobre Dicionário Sentimental do Adultério, de Filipa Melo (n. 1972), obra singular que acaba de chegar às livrarias. Com desembaraço e alguma ironia, a autora cruza fontes históricas e bibliográficas com textos literários de todas as épocas, compondo uma panorâmica do adultério tout court. Sem pretenciosismos académicos, o Dicionário... leva-nos de Abraão a Zeus. Como qualquer dicionário, também este está ordenado por ordem alfabética: Abraão, Bovary, Cleópatra, Doidas, Espinosa, Festa dos Cornos (nos Açores) e assim sucessivamente. Num registo heterodoxo, a autora não hesita em considerar a ligação de Abraão com Agar um acto equivalente ao que hoje chamamos barriga de aluguer. Não deixa de ter razão: a condescendência da mulher de Abraão de certo modo antecipou essa prática hoje comum. O verbete dedicado a Hollywood é ilustrado com a ligação entre Ingrid Bergman e Roberto Rossellini, ambos casados. Ingrid engravidou antes de divorciar-se e o tom das manchetes provocou, como sói dizer-se, alarme social. O caso foi discutido no Senado, onde Ingrid e Rossellini foram apelidados de «agentes do Diabo» (um pedido oficial de desculpas chegaria vinte anos mais tarde). Um exemplo típico da hipocrisia social nos anos 1940 e 50. Em Estatísticas, somos confrontados com uma série de estudos sobre hábitos e comportamentos sexuais. Uma citação da antropóloga Helen Fisher relacionada com períodos de adultério permissivo em «139 sociedades estudadas na década de 1940», deixa o leitor pendurado. O trecho remete para a fonte (a obra Anatomy of Love, de 1992), mas não nos diz quais as sociedades onde, em certas datas comemorativas, homens e mulheres podiam ter relações extra-conjugais com os respectivos cunhados. É pena. O adultério de Maria Adelaide Coelho, tornado público em 1918, expõe com clareza a subalternidade das mulheres. Filha e herdeira do fundador do Diário de Notícias, Maria Adelaide abandonou a casa de família, o palácio de São Vicente, para seguir o amante, vinte anos mais novo. Apoiado em pareceres clínicos, o marido, o influente Alfredo Carneiro da Cunha, internou-a num hospício do Porto durante oito meses (o amante esteve preso sem culpa formada durante quatro anos) e desapossou-a de todos os bens. Doida, diziam eles. Três estrelas. Publicou a Quetzal.