quinta-feira, 18 de maio de 2017

LEIRIA & SZERB


Hoje na Sábado escrevo sobre Ficções, de Mário-Henrique Leiria (1923-1980). A obra acaba de ser reunida num grosso volume de mais de setecentas páginas. Com excepção de Cesariny, o Panteão literário português tem sido avaro com os surrealistas. Nem sequer podemos acrescentar O’Neill, porque a sua passagem pelo movimento foi um ápice. Isso talvez explique a desatenção com o autor. Ficções colige contos, a novela Diapasão, teatro, guiões, outro tipo de textos, e até a famosa banda desenhada Mário e Isabel. O volume conta ainda com ilustrações de Cruzeiro Seixas. Responsável pela edição, Tania Martuscelli, crítica de literatura e professora na Universidade do Colorado, fez um rigoroso trabalho de pesquisa no espólio do autor, não deixando nada de fora, inéditos incluídos. Tendo vivido no Brasil durante nove anos (entre 1961 e 1970, para obviar à perseguição da Pide), Mário-Henrique Leiria é sobretudo conhecido por dois livros famosos: Contos do Gin-Tonic, de 1973, e Novos Contos do Gin, de 1974, ambos anteriores à actual moda do gin. Casos de Direito Galático, de 1975, de índole marcadamente política, perfaz o trio que para a maioria dos leitores constitui a obra canónica, caracterizada por truculência verbal, alto teor de corrosão, escrita automática e humor negro. Mas é muito vasto o corpus disperso por jornais e revistas, como esta edição demonstra. Marginal do Meio literário, Mário-Henrique Leiria parodia os gurus respectivos, bem como modas e rituais do establishment. Sobre Barthes e a deriva estruturalista, desconstrói um excerto hermenêutico, laudatório (não identificado), e conclui: «Que chatice! Este país está uma desgraça. Já nem sequer há intelectuais decentes!» O seu universo era de facto outro. Nos fragmentos de O Mundo Inquietante de Josela, de 1975, o nonsense é de regra: «E então não é que, ao chegar-lhe a vez de se servir, o Zeca pega na faca e zás, no pescoço da Madame! Francamente! A cabeça caiu logo no chão. Ficámos embasbacados.» Problema maior do anfitrião… o corpo de Madame não cabia no triturador do lixo. Infelizmente, uma revisão menos atenta faz com que alguns textos sejam indicados no índice com o número de página errado. Quatro estrelas. Publicou a E-Primatur.

Escrevo ainda sobre Viajante à Luz da Lua, de Antal Szerb (1901-1945). Traduzido directamente do húngaro, chegou finalmente à edição portuguesa este famoso romance. Salvo melhor informação, trata-se do primeiro livro do autor a ser publicado no nosso país. Em Dezembro de 1944, não foi a origem judaica a causa da deportação para o campo de Balf, onde seria espancado até à morte no mês seguinte. Foi o teor do capítulo sobre literatura soviética que escreveu em História da Literatura Mundial (1941), ao arrepio do Diktat do regime comunista húngaro. Académico respeitado, homem do mundo, tradutor heterodoxo (P. G. Wodehouse e outros), Szerb ganhou notoriedade internacional quando, em 1994, Viajante à Luz da Lua foi traduzido para a língua inglesa. Publicado em 1937, o romance conta a história de um casamento falhado e consequente itinerância sexual. Então em voga, a psicanálise explica a personalidade e o comportamento de Mihály a partir da lua de mel em Veneza. As reflexões do autor sobre o ar do tempo são premonitórias da iminência da loucura que iria mergulhar a Europa nas trevas. Seria pleonástico insistir no classicismo da escrita do autor. Quatro estrelas. Publicou a Guerra & Paz.