Hoje na Sábado escrevo sobre Vislumbres da Índia, do mexicano Octavio Paz (1914-1998). Não é novidade para ninguém que o autor é um dos mais notáveis poetas do século XX. Como ensaísta é menos conhecido entre nós, mas acaba de ser reeditado o último livro que publicou, Vislumbres da Índia, que está longe de ser um livro de viagens tout court. Trata-se de um ensaio sobre o país onde exerceu funções diplomáticas nos anos 1950, e de novo a partir de 1962, então já como embaixador. Apoiado numa experiência de muitos anos, Paz reflecte sobre a diversidade da Índia, nos mais variados temas: o denominador comum da língua inglesa, política, sistema de castas, arquitectura, cultura (artes plásticas, poesia, música, filosofia), gastronomia e religiões, em particular a hindu e a islâmica. É evidente que o livro inclui descrições do quotidiano de Bombaim e Deli, bem como referências a viagens ao Afeganistão e outros países, sem esquecer a guerra sino-indiana de 1962, mas o foco central tem índole diferente. Paz detém-se com minúcia no legado colonial britânico («A Índia moderna é inexplicável sem a influência da cultura inglesa…»), por oposição à colonização hispânica do México. Com admirável poder de síntese, traça um quadro nítido da evolução do país, desde os anos mais duros da ocupação, até aos massacres de 1947 (entre muçulmanos e hindus) que deram origem a meio milhão de mortos e à fractura em Paquistão e Índia. Seguindo um raciocínio claro, o autor introduz o leitor na teia das complexas relações de poder: secularismo do Estado, o exército como «defensor da ordem e da Constituição» (ao arrepio da tradição latino-americana de indutor de desordens civis), a máquina bem oleada do Civil Service, o papel determinante do Partido do Congresso, os perfis de Gandhi e Nehru, islão vs hinduísmo, hábitos e costumes, etc. Em suma, um verdadeiro companion do que foi a Índia até à primeira metade dos anos 1990. O desencontro de Gandhi e Rabindranath Tagore surge ilustrado pela prática da queima de roupa e outros produtos importados. Ao ideólogo do Satyagraha (não-violência), adversário de tudo o que fosse estrangeiro, Tagore opôs: «Prefiro dar essas roupas aos que andam nus.» Como este, outros episódios aparentemente prosaicos pontuam o livro. Cinco estrelas. Publicou a Relógio d’Água.