quinta-feira, 9 de março de 2017

DULCE GARCIA


Hoje na Sábado escrevo sobre Quando perdes tudo não tens pressa de ir a lado nenhum, o primeiro romance de Dulce Garcia. O livro confirma o óbvio: nos últimos vinte anos, a melhor ficção portuguesa tem sido escrita por mulheres. Nada a ver com “escrita no feminino”. Falo de literatura escrita por mulheres. O fôlego narrativo de Quando perdes tudo não tens pressa de ir a lado nenhum faz subir a fasquia dessa evidência. Mérito não despiciendo, a autora tem um invejável desembaraço vocabular. Terreno movediço: Isabel é uma mulher à deriva na zona de fronteira entre a loucura e o senso comum. Protagonista e co-narradora (o romance é contado a duas vozes), Isabel, «a mulher do saco», acampa no aeroporto. É ali que passa a sua vida em revista. À luz crua dos flashbacks, os dela e os de Afonso, amante com estatuto de narrador, aquele que lhe roubou «uma existência arrumadinha para [a] lançar na mais atroz das solidões», conhecemos os porquês, o meio em que cresceu, o espaço em que se move, o perfil violento do pai, a mãe acomodada, suicidados de passagem (Virginia Woolf, Stig Dagerman, Sylvia Plath), crianças apanhadas pelo fogo cruzado dos pais, o irmão Quim atirado «para baixo de um camião» com apenas 35 anos, enfim livre dos fantasmas que o assombravam, paixões itinerantes, mentiras, ciladas, ataques de pânico, o dia em que Isabel resolveu separar-se do marido: «O Luís Miguel reagiu calmamente à notícia da nossa separação. […] Fomos para casa em silêncio. Despi-me, deitei-me. Chorei. E depois adormeci. Acordei com ele a masturbar-se.» É muita coisa junta, o plot não é linear, nem amável, mas a vida também não. Podia ser uma história como tantas. O que a resgata do lugar-comum, o que faz daquele obsessivo triângulo amoroso um pormaior, é o retrato em grande angular de uma mulher entregue a si própria, indiferente a regras e convenções. Prosa seca, isenta de autocomplacência ou qualquer tipo de floreados: «querido, estás a maçar-me, sai de cima de mim». Por mim dispensaria os inserts sobre a hyperthymesia, a síndrome de Riley-Day ou o DIU (e outros como estes), mas não serão as fontes de autoridade a beliscar o prazer do texto. Cinco estrelas. Publicou a Guerra & Paz.