quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

RAHMAN & KNAUSGARD


A avaliar pela unanimidade crítica, e estamos a falar de um coro que inclui gente do calibre de Joyce Carol Oates e James Wood, a literatura pós-colonial ganhou um nome de peso na pessoa de Zia Haider Rahman, cidadão britânico nascido no Bangladesh, radicado no Reino Unido desde criança, formado em Cambridge, Oxford e Yale, banqueiro da Goldman Sachs e, actualmente, advogado de direitos humanos na Transparency International. Também escritor “sem domicílio”, como Steiner disse de outros ao falar de extraterritorialidade. As epígrafes de cada uma das 22 secções do livro são eloquentes, mas Somerset Maugham chegava: «Há pessoas que se adaptam tão bem à máscara que assumiram que por vezes acabam por tornar-se quem pareciam ser.» Porém, quem abre o volume é Sebald. Rahman publicou em 2014 o seu primeiro (e até à data único) livro, À Luz do que Sabemos. A guerra do Afeganistão, o crash de 2008 e as migrações forçadas são três tópicos fortes deste romance de matriz enciclopédica. O autor sabe do que fala, seja sobre Wall Street ou a pulsão de alteridade que molda a sociedade britânica actual, o lodaçal de Islamabad ou os códigos Oxbridge. A partir do lugar de déraciné, constrói uma narrativa focada no confronto de castas. Atenção: castas e não classes, na medida em que tudo se joga nas mil nuances das relações sociais, em particular na identificação do «charme desprendido de quem tem origens superiores.» O narrador sabe que nunca será um “deles”. E não é pelo facto de não ter um bom alfaiate. Vários episódios estabelecem essa linha de fronteira. O da funcionária de apelido sonante que arromba uma janela em Cabul porque a «sua pele branca» lhe dava esse direito, ilustra bem o ponto de vista que defende. À Luz do que Sabemos é o retrato do mundo pós-11/9 nas suas formas mais evidentes: Iluminismo do sector financeiro, terrorismo, povos expatriados. A imagem de Gödel e Einstein a caminharem no terreno de uma quinta americana (ver página 734) é um exemplo do desenraizamento que o livro explora em todos os matizes. De Zafar, o protagonista, Rahman poderá dizer o que Flaubert disse da Bovary. Quatro estrelas. Publicou a Quetzal.

Chegou às livrarias No Outono, um dos volumes da tetralogia que Karl Ove Knausgard (n. 1968) dedicou às estações do ano. Célebre pela saga autobiográfica A Minha Luta, da qual estão traduzidos quatro dos seis volumes, Knausgard tornou-se um autor de culto também em Portugal, apesar da mudança de registo na língua de chegada: João Reis e Pedro Fernandes traduziram dois livros a partir dos originais noruegueses, enquanto Miguel Serras Pereira fez as suas traduções a partir das edições inglesas de Um Homem Apaixonado, A Ilha da Infância e Dança no Escuro. No Outono tem ilustrações de Vanessa Baird e compõe-se de um conjunto de três cartas dirigidas a uma filha que vai nascer. Cada carta é preenchida por vinte textos breves, sobre tópicos tão diferentes como sacos de plástico, gasolina, urina, sangue, febre, lábios vaginais, piolhos, Van Gogh, latas de conserva, vomitado, moscas, retretes, etc. Em cada um deles Knausgard expõe o seu ponto de vista: «A vergonha ajusta diferenças, cria segredos, desenvolve tensões. […] É na sexualidade que se trava a grande batalha entre a vergonha e o desejo.» Flaubert tem direito a vénia. Quatro estrelas. Publicou a Relógio d'Água.